sexta-feira, dezembro 30, 2005

"The Descent", de Neil Marshall

Class.:

"O medo tem muitos olhos e enxerga coisas no subterrâneo." (Miguel de Cervantes)

Após uma incursão pelas trevas, calcorreando e estremecendo numa escuridão física e anímica, começo lentamente a pestanejar os olhos, ajustando a visão face à súbita claridade. Sacudido para a realidade quotidiana, verifico que já não me encontro na aterrorizante gruta… encontro-me depositado numa sala de cinema e perante o meu olhar, os créditos finais de uma das melhores experiências cinematográficas do ano, desenrolam os valores de produção. Permaneço atónito e assombrado pelo sublime final ambíguo e pela sua multiplicidade interpretativa. De repente, o título assola o meu espírito e impregna-se na minha memória: “The Descent”!

Em 2002, Neil Marshall iniciava um culto com “Dog Soldiers”, uma exótica mescla de horror e comédia. Neste “The Descent”, palmilha um diferente trilho, utilizando um ambiente opressivo numa desesperada luta pela sobrevivência. Numa remota montanha, seis raparigas encontram-se para a aventura anual, uma viagem às artérias da terra. O grupo sonda o sistema de uma caverna, desfrutando o bizarro e gracioso panorama. Distraídas pela paisagem, são vítimas de uma catástrofe: uma súbita derrocada barra-lhes a superfície e as jovens ficam aprisionadas no interior da caverna. As raparigas vêem-se obrigadas a encontrar uma saída para sobreviver, mas quando alcançam uma inexplorada câmara, o grupo começa a desintegrar-se.

Marshall cria seis distintas personagens femininas, imbuídas num carácter intrigante, fugindo aos estereótipos do género onde as meninas deslizam com rótulos de “queixinhas”, “choramingas”, “galdéria”, “rameira”, “birrenta”, ou “histérica”. O elenco é excelente e as raparigas não necessitam de filmagens sensuais para comandar a atenção. Possuidoras de uma índole mutável, quer heróica, desprezível e aterradora, as actrizes ministram um desempenho denso.

Bem antes da deflagração de um ambiente infernal, Marshall executa um formidável trabalho instalando tensão, claustrofobia e um sinuoso sentido de malícia através de sombras voláteis, isolamento extremo e passagens claustrofóbicas. Aqui não existe edição à MTV, nem falsos sustos. É construído um ambiente asfixiante enquanto visionamos as raparigas espremendo-se pelas passagens comprimidas, lutando contra o tempo e contra as trevas que degradam o seu estado mental. As interpretações são surpreendentemente espantosas, a acção fantástica e alguns momentos de apurado humor negro aliviarão de forma ténue a infernal tensão que deixará muito espectador quase sem unhas.

Os efeitos especiais são simples mas eficientes, com menção especial para uma das fracturas expostas mais suculentas da história da Sétima Arte. Servem devidamente o propósito de tornar “The Descent” uma maratona de malevolência, onde muitos deixarão as marcas das unhas nos apoios dos respectivos assentos. A fotografia é espectacular e as cenas filmadas em infra-vermelhos são soberbas, incutindo realismo. O argumento de Marshall é muitíssimo bem elaborado, prestando a devida atenção na edificação das personagens, mantendo a tensão progressiva. A sua configuração claustrofóbica é magnífica, adornando-a numa cerrada escuridão e estruturando-a com luzes diminutas patentes em lanternas, tochas ou luminosidade fluorescente. A utilização da visão nocturna proporciona uma das cenas mais inspiradas da História do Cinema de Terror.

As evocações a “The Shining” de Stanley Kubrick (numa filmagem aérea de uma estrada serpenteando através da floresta) e “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola (uma personagem emergindo lentamente a cabeça numa superfície líquida) reforçam a alusão a mentes desorientadas. Este é um filme que utiliza referências cinematográficas (sendo “Carrie” de Brian de Palma a mais impressionante) com o intuito de homenagem e salientando “The Descent” numa plataforma temática. Uma mão emergindo do solo, além de aludir a “Evil Dead” de Sam Raimi, engloba o imaginário de inúmeros filmes de zombies, assinalando alegoricamente a personagem como uma morta-viva.

Neil Marshall possui o olho concludente para um memorável imaginário. Algumas imagens repulsivas e asquerosas impregnar-se-ão na lembrança da audiência numa validade indeterminada. Ele domina com uma perspicácia e profundidade invulgares o seu género, transcendendo-o para uma plataforma de engenhosa, inventiva e esmerada cinematografia. A sua carreira vê cimentado e multiplicado o seu culto de fãs e ao contrário do título deste filme, encontra-se numa ascendência merecida.

Após meros minutos de visionamento, “The Descent” fará espectadores pularem dos assentos. O seu brutal poder é manifestar a forma como o medo consome sentidos e lealdades. Os sustos balbuciarão audiências na definitiva detonação dos momentos críticos, onde o ambiente atinge proporções epilépticas e o gore não autoriza espaço para a imaginação, apoderando-se dos pesadelos mais recônditos. O filme é uma metáfora para a descida de uma mente perturbada rumo a um estado de desespero, raiva e pavor primitivos. Somos abandonados por Marshall na escura caverna da sala de Cinema e seja qual for o trilho que escavemos no denso labirinto, apenas nos iremos deparar com horror na sua genuína e visceral disposição. “The Descent” é uma nutritiva fatia gore com polpa de pura excelência.

19 Comments:

Blogger Sérgio Lopes said...

É o melhor filme de terror do ano. Excelente crítica (mais uma vez) a um filme deveras recomendável. Curiosamente, 2ª feira sai no Cine7 a minha crítica a esse filme :)

Cumprimentos,

Sérgio Lopes

12:06 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

É com uma elevada margem, o melhor filme de terror do ano e um dos melhores da última década.

Marshall foi um dos poucos cineastas que não me desiludiu no presente ano. Não é apenas uma pérola do terror, é uma maravilhosa contrução cinematográfica.

Cumprimentos.

12:39 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

eu mesmo curioso para ver este filme, penso que vai passar no cinema se não estou em erro!!!

2:16 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Estreou esta semana... é aproveitar!

2:27 da tarde  
Blogger Nuno Cargaleiro said...

quero ver!!!!

12:47 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Aconselho vivamente! É uma das melhores experiências que tive este ano numa sala de Cinema. Não é apenas uma Obra-Prima do Terror, é igualmente um verdadeiro recital cinematográfico.

1:11 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Pois a mim... arrebatou-me! Cinco estrelas é uma mera simbologia, pois o filme é uma fenomenal Obra-Prima do género.

Long live King Marshall. :)

Abraço e Boas entradas!

6:02 da tarde  
Blogger MPB said...

Pois é verdade que é dos melhores do género dos ultimos anos... um género morto, que acaba por ser recuperado na plenitude por Marshall após uma curiosa incursão de Rob Zombie pelo meio em "The House of 1000 Copses".

Agora o género ganha novo "sangue". Marshall criou ambientes e personagens como há muito nao se via no género.

Cumps e bom ano ;)

8:31 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Sem dúvida! Marshall devolveu em doses massivas o que andava a rarear neste género em particular. Tremendo!

Bom ano para ti também!

9:19 da tarde  
Blogger Carlos M. Reis said...

É muito bom sim senhor. Não sei se lhe dava pontuação máxima, mas tal como tu dizes, isso é apenas simbólico.

Um grande abraço e um óptimo 2006 Katateh.

Um abraço!

2:15 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Exacto... pura simbologia... digamos: Adorno. :D

Abraço!

7:33 da tarde  
Blogger atomo! said...

Já agora para aqueles que andam à procura do novo cinema de terror que ainda possa interessar aqui fica a dica para verem "Calvaire" (The Ordeal na versão inglesa) de Fabrice Du Welz.

Foi um filme que passou algo despercebido em 2004, mas que durante 2005 recebeu alguma atenção por parte da crítica e do público

Desde já parabéns pelo magnífico blog e Bom Ano Novo!

abraços!

1:52 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Muito obrigado pela sugestão deixada.

Abraço!

12:42 da tarde  
Blogger gonn1000 said...

Não achei assim tão bom, embora tenha gostado, e a par de "Cabin Fever" é do melhor que o género proporcionou ultimamente.

3:46 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Pois eu adorei. Meticulosamente requintado, quer em homenagens que servem a narrativa, quer na explanação da genialidade de Marshall. Fabuloso!

7:00 da tarde  
Blogger Ricardo Lopes Moura said...

Não se deve exagerar ao ponto de lhe chamar o melhor filme de terror de 2005, mas trata-se de uma pequeno filme que atinge os seus objectivos. A história tem pouca originalidade, mas ganha em efectividade.
Se gostares de ler outras opiniões, espreita:
http://axasteoque.blogspot.com/2006/01/descida-de-neil-marshall.html
Um abraço

4:53 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Cada qual terá a sua opinião (obviamente) e para mim não existe exagero, pois "The Descent" é claramente e com elevada margem de segurança o melhor filme de terror de 2005.

Abraço!

1:14 da tarde  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Comprei este filme logo que saiu e considero-o uma obra prima. E o filme funciona a outros níveis que não apenas o de terror. Encontram-se lá belas homenagens à claustrofobia de Alien e à ambiência de Carpenter. Claustrofóbico, visceral e assustador. Para mim, é um filme que resulta muito bem.

Abraço

6:16 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

E como este género necessitava desta lufada...

Abraço!

10:05 da manhã  

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