domingo, janeiro 15, 2006

"Jarhead", de Sam Mendes

Class.:

Jarros Humanos

A guerra desintegra psiques. Esta é uma realidade incontestável, mas raramente expressa no Cinema até ao advento da década de 70, quando despontaram filmes sobre o Vietnam. Essa guerra contraproducente, além de ter colhido múltiplas vida, desvairou mentes com acontecimentos nefastos que ainda repercutem nos dias de hoje, graças ao clã Bush. “Jarhead” analisa a vivência de soldados americanos durante a Guerra do Golfo pelo olhar do soldado Anthony Swofford (Jake Gyllenhaal), numa estadia que consistiu numa combinação deletéria de inquietação, tédio, desgosto e frustração.

“Jarhead” é um diferente espécimen de filme Anti-Guerra, pois é um filme de guerra sem a projecção da mesma. É um drama com pinceladas de absurdo e subtis contornos de comentário pessoal. O facto de um filme evidenciar material já explorado e filtrado em películas predecessoras não esmorece ou danifica a sua possível qualidade, mas “Jarhead” sofre apenas com alguma falta de audácia. As hostes questionam a lealdade das mulheres que foram forçados a abandonar, a confiança nos companheiros e a própria valentia. Quando muitos realizadores ofertariam respostas, Mendes deixa-nos a flutuar num primoroso limbo.

Os soldados encontram-se aprumados para combate, mas não existe um destino consolidado, exceptuando a próxima duna onde encontrarão mais deserto, inutilidade e tédio. Os marines não recebem a alcunha de Jarhead apenas pelo seu corte de cabelo. Eles são manuseados como um jarro (“jar” em inglês): esvaziados e depois atestados com instruções de sobrevivência, caça, assassinato e doses consideráveis de essência militar. “Jarhead” ressalva como estes jarros humanos nunca são preenchidos com noções sobre como se reajustarem à vida civil.

“Jarhead” é um filme sobre perda. Não sobre a destruição da vida física, mas sobre a deterioração numa plataforma anímica. Retrata o extravio existencial de soldados, banidos do seu quotidiano e do aconchego da sua namorada/esposa, família, amigos e emprego. Este processo de transmutação da personalidade é um dos pontos exponenciais de “Jarhead”, gerando a sua distinção relativamente aos restantes e inúmeros filmes do género. É uma genuína decomposição dos eventos nocivos, com uma extremidade que roça o surreal. Após sumária reflexão, encaixa-se a razão da inserção de elementos satíricos, extravagantes e fantásticos em obras deste género: é a forma pela qual uma mente racional encontra sentido na experiência. A virtude de “Jarhead” é escavar a verdade na sua forma indigesta. Um dos seus predicados, que muitos confundirão com defeito, é o facto de não pretender fazer sentido (será que alguma guerra faz sentido?), contendo relevante significado. A ambiguidade retrata nitidamente a experiência daninha de Swofford.

De forma honrosa, Mendes despende algum tempo homenageando filmes de guerra, como “Full Metal Jacket” de Stanley Kubrick (na estrutura do segmento inicial) ou mencionando dignamente “The Deer Hunter” de Michael Cimino. Um tributo especial sucede quando os soldados visionam “Apocalypse Now” de Francis Ford Coppola, na memorável cena da “Cavalgada das Valquírias” de Wagner. Existe um longo historial de relatos afirmando que filmes de guerra são utilizados para instigar obediência e vigor nos militares. “Jarhead” nunca será exibido para atiçar exércitos, graças à sua depressiva dissecação do “outro lado” da Guerra do Golfo, mas existe aqui uma história honesta que merece ser contemplada.

O deslumbrante génio estilístico de Mendes derrama sucessivas imagens arrebatadoras, com um primor plástico avassalador. É um mestre na construção de cenas com um forte sentido de impacto visual e psicológico, contando com a colaboração do excelso director de fotografia Roger Deakins, capturando de forma esplêndida a luz e textura do deserto. Deakins, que conta no seu currículo com 5 nomeações para os Oscares, constrói um ambiente surreal ornamentando o filme com cenas esplendorosas e transcendentais.

Além das sumptuosas imagens existe a poderosa tensão sexual e a urgência homicida que assola as tropas, projectando uma espécie de subversão dos estereótipos dos filmes do género. Envolvidos numa asfixiante crise de inércia, os soldados desatinam executando peculiares actividades que vão desde uma especial festa de Natal ao acto da masturbação. Esta explosão hormonal funciona em parte como uma metáfora para o esforço dispendido sem compensação concreta. Para garantir coesão e uma índole íntima na história, os actores envolvidos empregam todo o poder dos seus arsenais. Jamie Foxx redime-se da incursão em “Stealth”, num papel concludente, apaixonado e enigmático. No entanto, Jake Gyllenhaal (“Donnie Darko”, “Brokeback Mountain”) absorve todas as alvíssaras, sendo uma das mais poderosas insígnias do filme. Crescendo de forma avassaladora filme após filme, Gyllenhaal narra igualmente o filme numa entoação irónica. Revela um intenso e fulgurante desempenho, projectando o degenerativo efeito psicológico que vibra através de uma geração.

Se o filme atear frustração no espectador, então Sam Mendes atinge categoricamente o seu intuito. O que é propositadamente olvidado em velocidade é profundamente acumulado no seu sentido de propósito. Mendes foca-se nos paradoxos enfrentados pelos soldados, ao invés de construir uma ideologia moral. Alguns irão expressar desapontamento pela inactividade, mas pessoalmente considero “Jarhead” um triunfo numa era cinematográfica em que a perniciosa rotina nos habituou a aguardar filmes de guerra estereotipados. “Jarhead” é uma pujante bomba, delineada para detonar o convencionalismo minado dos filmes do género.

16 Comments:

Blogger Carlos M. Reis said...

O filme tem sido arrasado pela critica portuguesa. Não vi ainda mais do que um "duas estrelas" nos vários jornais que comprei.

Mas não sou muito fã do elenco (à excessão do Jamie Foxx) e mesmo de Sam Mendes. Como tal, fica para mais tarde.

5:18 da tarde  
Blogger gonn1000 said...

Não percebo o desprezo da crítica nacional, acho que esta é das melhores obras em cartaz. Mesmo não sendo brilhante, basta a soberba prestação de Gyllenhaal e a impressionante composição visual para colocar o filme na lista daqueles que vale a pena ver.

7:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

neste filme está um actor do qual eu gosto bastante, Jake Gyllenhaal, mas como a vida vai um pouco torta, vou esperar pela edição de dvd :)

8:22 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

André Batista: Vê! Vale bem a pena.
Cumprimentos.

Knoxville: Nem todos o arrasam. Pessoalmente considero-o um filme bastante interessante, mas Mendes volta a revelar alguma falta de audácia. Ele próprio afirma que busca inspiração em filmes antigos, mas o seu génio é tanto, que sou da opinião que deveria esplanar uma identidade mais forte!
Abraço!

gonn1000: Sem dúvida! Trata-se de um filme indispensável.

membio: Se a desculpa é essa então estás desculpado. ;)

9:59 da tarde  
Blogger Pedro_Ginja said...

Membio: Tenho que te lembrar que a edição em DVD vai sair bem mais car. Pelo menos 20 euros...Mas tu lá sabes...

Este é realmente um que não percebo porque foi tão arrasado. Apenas o Jõao Lopes lhe deu quatro estrelas. De resto foi miserável...
E o filme tem algumas qualidades. não é assim tão mau...

10:42 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Eu também lhe dou 4 estrelas. Gostei bastante do que vi e experimentei.

O membio quis dizer que o irá alugar, quando sair em DVD.

12:40 da tarde  
Blogger brain-mixer said...

Pelo trailer parecia-me um pouco com o espírito de "Três Reis", ou é impressão minha? Se assim, for tanto melhor!

5:58 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Mário Lopes: Combinado.
Abraço!

Brain-Mixer: Nem por isso, pois não é tão enfatizado o elemento satírico. São dois bons filmes, mas "Jarhead" é bem melhor.

6:50 da tarde  
Blogger Pure_Water said...

nice review, tenho mesmo que ir ver o filme.

filme com Jake Gyllenhaal nao pode escapar ^^

2:44 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

Brain-Mixer- Melhor que o "Três Reis" não chegarei a tanto, dado que é num estilo mais seco (ainda mais) e um pouco mais emocionante. Muito mais ficcionado, isso tenho a certeza. Mas nunca mais negro...
(excepto durante a chuva de petróleo -grande cena)

Mário Lopes- O teu blog vai ser um dos meus próximos acrescentos, na minha lista de links. Na minha opnião humilde é um site bastante bom. Parabéns...
Tenho estado a fazer uma recolha e tenho visto muitos blogs. E só acrescento à lista blogs actualizados e de qualidade.
E dou-lhe três estrelas (6/10)...
Ainda percebo um pouco do que se passa...hehehe

Abraço

10:57 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

Mais uma coisa Francisco...
Onde vais buscar imagens de filmes sem ser de Holywood como do "The Descent"? Naõ consigo encontrar na net um site para outros filmes menos conhecidos...

Desculpa tive de usar a tua imagem para aminha crítica de "The Descent"...

10:58 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Mário Lopes: É um filme maravilhoso, adorei cada segundo.
Abraço!

Pure_Water: É um filme imperdível, merece ser visionado.

Pedro Ginja: Não tenho um site específico para as imagens. Apenas te aconselho pesquisa exaustiva pelos motores de busca da net.

6:57 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Afinal não são assim tantos a detestar o filme. Junta-te ao grupo dos que gostam do que viram. ;)

10:23 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Gyllenhaal é claramente um dos dínamos do filme.
Grande início de ano.

1:09 da tarde  
Blogger JHB said...

Aqui só tenho a dizer que Sam Mendes grande. Máquina Zero, Caminho para a perdição e sobretudo Beleza Americana... Quero mais...

8:07 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Também eu... também eu...

9:20 da manhã  

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