domingo, abril 16, 2006

"Inside Man", de Spike Lee

Class.:



Convencionalismos mascarados
Numa altura em que mestres do cinema autoral (David Cronenberg, por exemplo) vêm os seus recentes projectos rotulados de convencional, mainstream, ou «o-mais-acessível-até-hoje», Spike Lee não poderia escapar à aridez de tal epíteto com este “Inside Man”. Tudo bem que numa certa extensão, Lee almeja o reconhecimento da sua linguagem cinematográfica junto de um público mais vasto, mas o filme não deixa de estar impresso com os seus brasões característicos. Isto deveria representar boas novas, mas a subtileza da pregação de Lee, há uns anos que passou a ter a sensibilidade de uma patada de elefante.

Inside Man” segue o conflito entre o detective Keith Frazier (Denzel Washington) e o assaltante de bancos, Dalton Russell (Clive Owen). À medida que o melindroso jogo do gato e do rato evolui, surge uma personagem vertiginosa: Madeline White (Jodie Foster), uma figura com motivos ocultos, que introduz ainda mais instabilidade a uma situação já de si volátil.
O filme é bom tecnicamente, com um trabalho de câmara tão abalizado, que os motivos de Russell deixam de ser cruciais em determinadas alturas. Como todos costumam ter motivos, a questão «porquê» dá lugar a «como», sendo a forma como empreendem os seus propósitos o mecanismo que mantém elevada a concentração do público. É um belo entretenimento conjugado com o dinâmico estilo visual de Lee, respectiva controvérsia e estilhaços de humor (no detalhe cultural de uma população em que o telemóvel é o novo membro da nossa anatomia). Contudo, originalidade é algo que se encontra ausente neste género moribundo, apesar de Lee tentar injectar as suas normas no projecto. O cenário é elementar e a exasperação urbana evoca de forma tão intensa “Dog Day Afternoon” de Sidney Lumet, que uma das personagens (Frazier) até o menciona.



Clive Owen, Denzel Washington e Jodie Foster, ministram um trabalho idóneo no estabelecimento do conflito. Owen passa a maioria do tempo com uma máscara, mas a mansidão glacial acentua o seu poderoso carisma. Foster ataca o papel com uma ferocidade electrizante, divertindo-se cabalmente. Na sua quarta colaboração com Lee após “Mo’ Better Blues”, “Malcolm X” e “He Got Game”, Denzel Washington emprega a desenvoltura necessária para manter a tensão elevada, salpicando a interpretação com alguns momentos de humor. Lee não exige que Denzel carregue sozinho o filme, mas apesar de “Inside Man” apresentar Frazier sem domínio sobre a situação, não poderia deixar de existir o banal momento Denzeliano: momento nutrido ao longo dos últimos filmes do oscarizado actor, para salientar como o homem domina tudo em seu redor.

Em “Inside Man”, Lee consegue a espaços estampar o seu carimbo encolerizado, imbuindo na película a explosiva mistura étnica da Big Apple, bem como os subtis espectros urbanos que a maioria dos cineastas olvida. As linhas de diálogo são lavradas com laivos de frustração tribal e sentimos a sua diversão na elaboração do thriller, injectando energia com os seus ritmos próprios, contando com interpretações de elevado nível, com uma composição sonora exemplar de Terence Blanchard e com uma excelente fotografia de Matthew Libatique (“Pi”, "Requiem for a Dream") que demonstra como consegue produzir fanfarra de estúdio, mantendo fidelidade à sua assinatura.



No entanto, Spike Lee encontra-se numa espécie de coma artístico, despertando esporadicamente nos sublimes “25th Hour”, “Do the Right Thing” e “Malcolm X”, através da exploração orgânica da sua amada New York. Sempre com o intuito de encarnar um «Shaft» versão realizador, o seu talento como cineasta é normalmente ofuscado pelo individualismo e pelo cerrado tom polémico da matéria indagada. Mesmo neste piscar de olhos a audiências alargadas, Lee pincela a tela final com seus temas, sejam eles o excelso retrato da fricção racial da vida nova iorquina pós 11 de Setembro ou o deplorável sexismo. “Inside Man” sofre com os seus piores instintos como realizador, imerso em estereótipos dúbios, particularmente na caracterização reles e indecorosa da maioria do sexo feminino: identificando a mulher pelo tamanho dos seios ou pelo grau de apetite sexual. Os membros da NYPD são apresentados como um bando de racistas e os judeus também são alvo de um retrato que gera no mínimo estupefacção. O argumento do estreante Russell Gewirtz, que inicialmente demonstra competência ao colocar-se sempre um passo à frente da audiência, tropeça nos derradeiros instantes ao atar pontas soltas de uma conclusão já anunciada, arrastando morosamente as cenas finais. Para um filme que depende tanto das personagens para progredir, o argumento possui crateras de meteorito, quer na omissão do background de uma personagem principal (Dalton Russell), no fraco desenvolvimente de uma personagem que poderia facilmente ser etiquetada de «inútil» (Madeline White) ou no retrato da amada de Frazier, resumida a uma simples amante libidinosa em lingerie.

Inside Man” inicia maravilhosamente com um monólogo de Clive Owen, abrindo as hostilidades de um Spike Lee Joint: informando-nos que este escolhe as palavras de forma metódica, porque não gosta de se repetir (o que não deixa de ser um paradoxo a confirmar bem perto do final). Todavia, o realizador que abomina estereótipos exagera num género de estúdio a manifestação subversiva daquilo que sempre foi: racialmente sensitivo e socialmente relevante. Nem um cofre-forte conseguiu suster a impetuosidade redundante que aflige o coma artístico de Spike Lee.

9 Comments:

Blogger gonn1000 said...

Não é brilhante, mas ainda assim marca pela positiva. Espero que no próximo filme Lee seja mais do que um tarefeiro, de qulquer forma.

11:08 da manhã  
Blogger Juom said...

Eu, como confesso fã(nático) pela obra de Spike Lee, gostei bastante do filme, como de resto tenho gostado bastante de tudo o que tenho visto dele. Desde o Clockers (que, se não me engano, foi o primeiro que vi dele) até Inside Man, o seu cinema está recheado de momentos de antologia, reflexão excelente, humor corrosivo... enfim, he's the man.

2:10 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

O traço Lee está lá...
Não se pode negar (bem visível na cena com o Sikh que é confundido com um árabe e que não fala sem o seu turbante)...

A mestria do realizador está lá (a cena de washington a descer umas escadas em caracol achei muito bom...

O argumento não é dos mais originais mas tem pontos interessantes (também de um "heist" movie não falta inventar nada por isso...)

E isto é apenas Lee a divertir-se...
Há muito que queria fazer um filme de estúdio para ganhar um dinheirito.
Não tem nada de mal...

E eu diverti-me. Por isso missão Cumprida Sr Lee

Ps: Agora a ver se faz um "Não Dês Bronca 2" ok???

11:31 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Miguel: As personagens são tão mal desenvolvidas que uma das principais é completamente inútil. Enfim...
Abraço Miguel!

André Carita: Para conheceres o génio (esporádico) de Lee, aconselho os sublimes "25th Hour" ou "Do the Right Thing".
Abraço e boa conclusão de férias.

Helena: Soube-me muito a pouco...

Gonçalo: Serei o único que considera que o filme desenvolve pouco mais que o seu trailer?

Mário Lopes: Aposto que vais gostar. O filme recebeu uma aclamação quase unânime. Viva a sobrevalorização!
Abraço! ;)

Paulo: Eu conhecendo a filmografia (quase) completa de Lee, detestei ver este Sell Out comercial. A raiva que mostrava de forma magnífica em "Do the Right Thing" agora apenas existe em sombras efémeras. Como alguém disse: «Lee deixou de se interessar».

Pedro Ginja: Sabes qual é a cena máxima do filme? É o diálogo com o rapaz dentro do cofre-forte. Sublime do início ao fim: Lee no seu melhor.

Agora o resto, bem... se Lee se divertiu, então deixou alguns de fora dessa diversão. E pessoalmente não aprovo a sua diversão à custa dos seus esterotipados Judeus (o que não deixa de ser estranho uma vez que luta contra o Racismo), ou da sua militância no Sexismo (denegrindo sempre a figura feminina).

Existem espasmos dos seus traços, mas falta-lhe a raiva e a sensibilidade apurada para sublinhá-los. Mas isto é apenas uma opinião pessoal, num oceano de louvações que este filme recebeu.

Queres um bom nome para uma sequela sua? Cá fica a minha sugestão: "Malcolm Triple X".

Abraço Pedro! ;)

1:11 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

E como sabes, respeito imenso a tua.
Cumprimentos.

7:10 da tarde  
Blogger Pedro_Ginja said...

Essa cena do sexismo é um traço Lee, por muito odiável que seja faz parte da sua mais recente filmografia e de quase (no Malcom X estou um pouco esquecido mas existe outra excepção naquele filme dele com a Anabel Sciorra e Wesley Snipes - não me lembra o nome) toda a mais antiga.
Basta ver o anterior "She Hate Me", expoente máximo desse sexismo.

É Lee, pode ser odiável mas é Lee.

É sempre um prazer estas salutares discussões no teu blog.
Abraço.

11:04 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

"She Hate Me" é o cúmulo desse sexismo, essa desprezível vertente de um cineasta com enorme talento subaproveitado.

Abraço!

11:40 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

É pena a cotação baixa Francisco, porque eu adorei este filme. Do princípio ao fim. Mas nem toda a gente tem de gostar. Aqui reside muitas vezes o antagonismo do juízo estético.

7:48 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

De Spike Lee espero sempre muito. Daí, talvez ter ficado um pouco desiludido...

9:40 da manhã  

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