sábado, julho 29, 2006

"Hard Candy", de David Slade

Class.:

Castrar a alma das personagens
Com uma forte componente de filme-tortura, “Hard Candy” descerra cortinas da memória para algumas obras bem interessantes deste género, como por exemplo, o psico-drama “Death and the Maiden” de Roman Polanski. A história pessoal entre as personagens do filme de Polanski encontra-se brumosa/ausente nos fotogramas do filme de Slade, sendo que a psicologia envolvida não passa de noções genéricas de raparigas desajustadas e homens pervertidos. A matéria que imortalizou alguns filmes deste género é justamente a substância que se encontra ausente em “Hard Candy”, ou seja, uma essencial dimensão humana. É lancinante a forma como David Slade (realizador) e Brian Nelson (argumentista) manipulam as suas personagens com visíveis cordelinhos para satisfazerem a direcção de um argumento, ao invés de incutirem peso emocional e psicológico nas suas acções. Sem impulsos orgânicos, as personagens tornam-se meras marionetas comandadas por indivíduos manhosos que ignoram a dimensão humana que o Cinema pode reflectir.

Pretendendo firmar um comentário social sobre conexões cibernautas e pedofilias digitais, “Hard Candy” resulta numa versão desalmadamente invertida do intemporal conto dos irmãos Grimm, “O Capuchinho Vermelho”, com fogo de artifício indie à mistura.
Numa sala de chat, Hayley Stark, uma adolescente de 14 anos, trava conhecimento com um fotógrafo de 32 anos chamado Jeff Kohlver. Após algumas semanas de teclanço, os dois combinam um encontro num café aleatório. Aí desponta um peculiar jogo de sedução, onde a intelectual e (aparentemente) libidinosa capuchinho vermelho permite que o lobo a conduza ao seu covil. Contudo, será que a menina prefere ser o prato principal ou a cozinheira Chefe?
Existe um certo aprumo estilístico, mas as comoções de videoclip/reclame publicitário sobrepõem as vibrações cinematográficas. Em termos básicos de thriller não existe uma compensação imagética que transcenda o género, nem existem justificações plausíveis para o rumo torturado que observamos. Se os minutos iniciais adensam uma ambiguidade travessa numa convicção assustadora, com close-ups constantes que sugerem investigação psicológica, quando surge o twist final, o filme já se encontra tão adelgaçado que o resultado é um sensaborão conto de vingança, com pálidas centelhas de moralidade. Após dez minutos de tensão, a direcção do filme entra em curto-circuito. Os planos construídos com a premência de anúncio televisivo sugam atenções, mas não passam de inflexões retóricas em torno de motivos camuflados.



As competentes interpretações de Patrick Wilson e Ellen Page esquivam-se da mediocridade vigente. Wilson deambula entre um pendor paternal e um declive pervertido, da mesma forma que Page interpola gaguejos ameninados com lampejos de uma maturidade precoce, num retrato inicialmente complexo de uma sociopata liceal. Todavia, a qualidade dos actores fica capada pelo débil argumento. Eles não interpretam pessoas, desempenham abstractas noções de personagens-marionetas. As reacções convencionais provocam monotonia, do lobo mau não constatámos actos de maldade que justifiquem o preenchimento de vários minutos aguilhoados, do capuchinho vermelho adolescente não descortinámos qualquer cariz púbere ou cândido, sendo que a concepção da personagem feminina representa apenas mais um papel escrito por homens numa harmonia medíocre. Este é um dos filmes mais desalmados dos últimos tempos. A bárbara castração de níveis de comiseração, adjuvada pelo carácter desprezível de ambas as personagens, provocam um hiato humano que impede qualquer conexão com os protagonistas.

Do extenso rol de momentos néscios, irei apenas mencionar dois em particular: O primeiro factor ridículo neste filme que ambiciona uma instigação séria, é o debate pseudo-filosófico travado enquanto uma das personagens é impiedosamente flagelada. Segundo, como apelidar o insignificante e desnecessário cameo da estrela indie, Sandra Oh, a vizinha de Jeff? Tudo se resume a uma futilidade risível. O desequilíbrio patente em “Hard Candy” é exacerbado ao limite nas voltas e reviravoltas inconsequentes, manifestadas pela destemperada luta que o filme trava até ao seu término pelo retrato dual de predador e vítima. A complexidade sofisticada das personagens nos minutos iniciais esvaece nas piruetas que o filme proporciona para testar as simpatias da audiência. A superfície cintilante da sua construção não consegue ocultar as maquinações descaradas dos autores.

13 Comments:

Blogger Dora said...

Há uns meses quando vi o trailer pareceu-me bem, mas claro está, ele não aparece cá, só mesmo depois em dvd.
Mas pelo que li em vários sitios, a critíca era boa.
Terei de o ver e depois opinar.

10:19 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Quem me dera pertencer à fracção da crítica que o apreciou, mas este é um dos filmes mais desumanos que vi na última década. Um sobrevalorizado produto, fruto de homens que se embrulham tanto nos cordelinhos das marionetas que criam, que às tantas já nem eles próprios sabem quem é o predador e quem é a vítima.

E o final... minha nossa... que abrupta patetice de remendo para uma direcção completamente desalinhada após 10 minutos de arranque.

Mas esta é a minha interpretação, claro está. Um filme atinge-nos de forma supra-pessoal.

10:30 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

O degelo que se apoderou da maioria dos produtos cinematográficos hodiernos é algo deveras preocupante. Para a construção de um mecanismo que intente desconstruir o processo de desumanização, torna-se crucial injectar vitalidade na personagem. Neste filme em particular, deambulam pela tela entidades desalmadas que obedecem criteriosamente ao rumo traçado pelas linhas de um argumento, sem atitudes orgânicas e sem capacidade para gerar empatia. Não experimentamos, nem visionamos personagens... apenas nos deparamos com meras noções convencionais com pernas, braços e fios de marionetas bem visíveis.

12:55 da tarde  
Blogger Sérgio Lopes said...

Ainda não vi Hard Candy. Mas pelo role de críticas positivas que tem tido, contrapostas com a crítica sempre fascinante do Francisco (embora negativa), ainda me dá mais vontade de o ver.

Prometo que depois, virei aqui comentar sobre o que achei de Hard Candy.

Abraço.

Sérgio Lopes

3:38 da tarde  
Blogger André Carita said...

Já tinha dito no blog do mário lopes, que infelizmente não tive disponibilidade para me deslocar ao cinema e ver este filme. Aguardo pacientemente pelo DVD. Foi a primeira crítica que li negativa em relação a este filme e ainda bem, fiquei ainda com mais curiosidade :)

Um abraço Francisco!
http://pensarvideojogos.blogspot.com

5:17 da tarde  
Blogger RPM said...

olà Amigo Francisco!

cà estou a comentar mais um texto teu....depois de uma semana excelente, de muito calor e humidade cà vou a caminho de Madrid e depois Lisboa.

é um filme que vou querer ver....na nova saison.

O festival internacional de cinema de Roma jà està anunciado para os dias de Outubro/Novembro.

abraço de feliz dia junto da tua Ninfa inspiradora!

RPM

8:09 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Sérgio Lopes: O filme gerou realmente um sururu enorme, mas pessoalmente, a montanha pariu um rato.

Abraço!

André Carita: Desejo-te sinceramente, a ti e todos quantos vejam este filme, que tenham uma experiência de visionamente melhor que a minha. Pois a falsidade que abunda foi lancinante para mim.

Abraço!

Rui: Fico feliz por ter corrido tudo bem. Cá te aguardamos.

Abraço amigo!

8:32 da manhã  
Blogger Carlos M. Reis said...

Estou longe de atribui-lo a votação minima, mas finalmente alguém que, como eu, não o acha nada fora do normal. Tornou-se um bocado "moda" falar bem de Hard Candy, mesmo quem nem o sequer o viu ainda. Gostei das interpretações, detestei o estudo das personagens e achei a realização algo mediana. E é com cada buraco no argumento...

Um abraço Francisco!

3:48 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

O argumento aparenta ter sido elaborado por um trabalhador de uma fábrica de queijos suiços... tamanha é a quantidade de buracos.

Abraço!


P.S.: Quanto à moda que este filme gerou, mesmo junto de quem nunca o viu... digamos que já nada me espanta num universo de Floribelas, morangos, açucares, boysband's, MTV movie awards, etc...

9:28 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

"Quanto à moda que este filme gerou, mesmo junto de quem nunca o viu... digamos que já nada me espanta num universo de Floribelas, morangos, açucares, boysband's, MTV movie awards, etc... "

Vá, não sejas mauzinho, comparar o filme com isso?? Ai ai ai...

Confesso que não estava à espera desta opinião, embora tenha sido muito bem fundamentada. Gostei do filme, mas concordo que a personagem feminina deixa pontas soltas e que o resultado fica abaixo do hype.

9:00 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Temos que dizer sem pudor tudo aquilo que nos vai na alma... ALMA... essa tremenda lacuna, num dos filmes mais desalmados da década.

8:20 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

nao concordo minimamente coma tua opiniao. para mim, é um dos thrillers psicológicos melhor conseguidos de sempre. É um filme peculiarmente invulgar, "estranho", esteticamente belo. A componente das interpretações é o ponto mais forte; os actores entregaram-se absolutamente as personagens - a soberba Ellen Page e o misterioso Patrick Wolf-. Para mim, é 1 dos melhores filmes de 2006. Contudo, aceito a tua opiniao, porque o mundo apenas pode avançar com a compreensao de cada pelo outro e com a aceitação da opiniao do outro. 1 ABRAÇO

4:13 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Ora nem mais. Viva a diversidade de opiniões!

Abraço!

4:19 da tarde  

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