sábado, julho 08, 2006

"The Proposition", de John Hillcoat

Class.:



O Bom, o Mau e o Misantropo

A época áurea do Western expirou há muito. Longe vão os tempos em que existiam realizadores que reescreviam as regras deste género, como o sublime Sergio Leone em meados da década de 60, numa altura em que Hollywood considerava o Western um artefacto nostálgico e fatigante. Leone reinventou o género com espectaculares composições em ecrã largo, como o notável “Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo”. Hoje em dia, já não se encontra audácia nem engenho para abordagens revisionistas à mitologia deste género, como o último Western de Clint Eastwood: “Unforgiven”. Restam-nos filmes como “Brokeback Mountain”, “A History of Violence” e este “The Proposition”, para sermos presenteados com salutares aparições espectrais dos elementos cativantes deste género.

Na abertura de “C’era una volta il West”, outra Obra-Prima de Sergio Leone, o cineasta foca-se nos pequenos detalhes (uma mosca incómoda, o estalar de dedos, o pingar de água) com uma impetuosidade contida que antecede a chegada da personagem de Charles Bronson e o subsequente tiroteio. “The Proposition” também crava as garras na plateia, logo na cena inicial. Mas ao invés da sublime contenção de Leone, somos imediatamente arremessados para o meio de uma chuva de balas, sem qualquer ideia sobre o partido que devemos tomar. A tensão desta sequência claustrofóbica sobressalta o espectador, alertando-o para os ritmos excepcionais que se seguem.

The Proposition” dá vida a uma porção da violenta história australiana, num conto ambíguo de vingança, rancor, lealdade e honra, embrulhado numa brutalidade plástica e num visual extasiante. Trata-se de um filme excepcional, com uma história moralmente densa, valores de produção admiráveis e um elenco perfeito, adornado pelas interpretações valorosas de Guy Pearce, Danny Huston e Ray Winstone, entre outros. Apesar da manipulação de certos factos verídicos, “The Proposition” desenrola os eventos numa mística dicotomia. Todos os intervenientes possuem vertentes admiráveis e execráveis. Os heróis conseguem ser tão cruéis como o mais desprezível bandido e os vilões mantêm o seu código de moralidade. Após o caótico tiroteio inicial, o capitão Stanley e seus homens capturam dois dos três irmãos Burns (Charlie e Mike), um gang acusado de actos de violência medonha. Envolto no zunido de moscas, Charlie Burns recebe uma proposta irrecusável de Stanley: em troco da liberdade do seu amado irmão mais novo, Mike, deverá perseguir e matar Arthur Burns, o seu nefário irmão mais velho.



John Hillcoat compõe consistentemente momentos chocantes, poderosos, espirituais e harmoniosos, numa serenidade estóica enquanto nos orienta numa jornada infernal. A cena que melhor realça esta destreza, surge quando o solitário Mike é violentamente chicoteado, enquanto o seu irmão mais velho escuta uma canção transcendental no seu covil. Existe uma dança bruxuleante entre a pura beldade e a ímpia fealdade. Graças à sua violência estripadora, Sam Peckinpah havia superado Leone no rebentamento de cápsulas de sangue, mas Hillcoat intenta chegar mais longe, convertendo uma impiedade sanguinolenta numa forma de arte. Os tons encarnados do inefável momento crepuscular dissolvem-se em poças de sangue, enquanto vítimas de uma investida ferina soltam os últimos sopros de vida. Benoit Delhomme capta em fotografia um árido inferno como pano de fundo, com ambientes langorosos e repulsivos que acrescentam peso ao tormento solitário que oprime o cadavérico Charlie. Mesmo as cenas arrebatadoramente belas são ornamentadas com poeira, pinceladas numa luminosidade parca e envoltas na composição sonora sussurrante de Cave.

O segundo argumento do músico de culto Nick Cave é um espelho do seu vulto sombrio. Numa penada brutal, Cave ainda encontra espaço nas entrelinhas para lavrar um humor subtil, amenizando ligeiramente a ferocidade do conflito. Homens selváticos compõem a maioria dos fotogramas, mas Emily “Face de Porcelana” Watson derrama uma alvura cândida, suavizando momentaneamente a contenda, para uma brutal explosão final que relembra as conclusões deliberadamente bárbaras de Peckinpah. Nick gloom rocker Cave cinzela os ângulos temáticos com enfermidade, penúria e morte, explorando o abismo entre a civilização e a selvajaria. Cave calcorreia poeticamente o familiar trilho sombrio de um músico que compôs há uma década um álbum denominado “Murder Ballads”. Aliás, o peculiar jardim da personagem de Watson evoca a sua música, “Where the Wild Roses Grow”. Apreciadores da sua música (como eu) irão reconhecer facilmente as correntes de fatalismo e ambiguidade que flúem no curso da sua obra. “The Proposition” não representa uma boa proposta de visionamento… representa uma indeclinável proposta de contemplamento.

14 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Não o vi :S

10:46 da manhã  
Blogger RPM said...

Amigo Francisco....

Feliz fim-de-semana. Desde Oz com amizade

abraço

RPM


O MI3 é mesmo de 'gritos'...

abraço

10:59 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Criswell: Nem imaginas o que perdes.

Rui: Isso de passar férias na minha estância turística requer uma bela gorjeta... pelo aluguer do espaço.

Bom fim-de-semana caro amigo.

11:38 da manhã  
Blogger isabel said...

não vi....

Para a semana, Hitchcock na Cinemateca...

Bom fim de semana

1:05 da tarde  
Blogger P.R said...

eu também adorei esta "proposta". Sem dúvida um dos melhores filmes estreadoa até agora. Mas porque 4 em vez de 5 estrelas?

Abraço

3:11 da tarde  
Blogger RPM said...

bom domingo, amigo!

abraço grande de amizade

10:37 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Isa: Isso é sempre uma óptima notícia para quem circunda Lisboa.
Bom fim-de-semana.

Helena: É de facto uma proposta imperdível.

Pedro Romão: Porque apesar de toda a sua enorme qualidade não atinge o estatuto de Obra-Prima. O filme não reinventa nem acrescenta algo ao que já se viu no passado. Simplesmente recebe o cunho da obra de Nick Cave e a realização surpreendente de Hillcoat, numa película que manipula de forma salutar elementos cativantes do Western... como explico no primeiro parágrafo.

Além do mais... uma Obra máxima deverá ser perfeita em todas as suas vertentes e ironicamente o filme que tem origem num argumento do brilhante músico (Cave), possui uma banda sonora que não atinge (nem por sombras) o estatuto de memorável... como o excelso choro do coyote de Ennio Morricone.

Considerar este filme Obra Prima é desrespeitar (ou olvidar) os génios revisionistas de Sergio Leone e Ennio Morricone, entre outros.

Abraço Pedro!

Rui: Bom Domingo amigo.
Abraço!

11:35 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

É mais uma prova da admiração que o filme suscitou.

Abraço!

8:34 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

Plasticamente interessante, mas o argumento deixou-me distante. Esperava mais.

11:48 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Opiniões...

1:09 da tarde  
Blogger Pedro_Ginja said...

Pois este "Escolha Mortal" foi a segunda melhor surpresa deste ano logo após o "Match Point" e caí que nem ginjas.

Grande filme e desta vez concordo absolutamente contigo.

Um grande filme, argumento e claro aquele final estrondoso.

E Ray Winstone sem dúvida a alma do filme.

Abraço

2:53 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Eina... finalmente encontramo-nos de acordo.

Abraço!

4:02 da tarde  
Blogger Pedro_Ginja said...

Tinha de Acontecer algum dia não é?

Hehe

Abraço

11:27 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

;)

Abraço!

12:01 da tarde  

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