sábado, agosto 19, 2006

"Miami Vice", de Michael Mann

Class.:

Anoitecer emocional em homens do dever

Existe uma bela porção de perversidade na edificação deste filme vertiginoso. Esqueçam a nostalgia imprimida nas repugnantes versões cinematográficas de “Charlie's Angels”, “Starsky and Hutch” ou “The Dukes of Hazzard”. Exceptuando o título, o par de detectives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs e uma cover da música de Phil Collins (“In the Air Tonight ”) que apenas desponta nos créditos finais, “Miami Vice” evoca muito pouco da série televisiva que fez furor na década de 80 e que teve Mann como produtor executivo. Grande fatia da acção decorre fora de Miami; os trajes claros, as águas cristalinas, as areias brancas e o néon festivo foram substituídos por matizes sombrias, granulosas e inóspitas. Eliminando as vibrações metrosexuais do espectáculo televisivo, Mann escavou fundo numa melancolia machista, aprofundando tormentos reprimidos de homens do dever.

Substituindo Don Johnson e Philip Michael Thomas estão Colin Farrell e Jamie Foxx como detectives Sonny Crockett e Ricardo Tubbs. Crockett e Tubbs infiltram-se no transporte de grandes carregamentos de droga no sul da Flórida na tentativa de identificação do grupo responsável pelas mortes de seus colegas de trabalho. Sejam polícias, ladrões, taxistas, produtores televisivos ou assassinos contratados, os homens que pululam uma fita de Mann conectam com o exacto fio de fatalismo: incapacidade para abstraírem o que são daquilo que fazem. O cineasta pinta devoções irracionais, revelando interesse na alienação de homens que operam na sombra da sociedade com elevado grau de competência e profissionalismo, apesar dos conflitos introspectivos e da mortificação do coração.



Mann é um daqueles raros cineastas com um apurado toque de Midas para com os seus actores. José Yero (John Ortiz) e Jesús Montoya (Luís Tosar) poderão sofrer com alguma falta de personalidade, mas o foco do filme é a solidão, a impotência e a alienação provocada pelo dever em dois homens (particularmente Sonny), nesta parábola moderna à história de Sodoma e Gomorra. Jamie Foxx erradia uma profusa porção de impotência que abate a sua personagem, mas é Colin Farrell quem explode em ondas carisma, acolhendo autoritariamente o foco do filme. Deambulando entre a área nublada que divide a sua identidade real da fabricada, Farrell desvenda de forma fascinante as valas da sua alma. Relativamente à actriz com quem contracena, deixo uma questão no ar: serei o único que considera que Gong Li comunica facialmente um ardor místico de uma actriz da era-muda? Li desempenha com um brio extraordinário, uma personagem que se funde maravilhosamente com Crockett, camuflando o seu real âmago numa vida que conspurca a sua essência. Nos universos machistas de Michael Mann o sexo indicia perigo e dor. As cenas íntimas entre ambos bailam a beleza quimérica e libertadora do seu amor com a melancolia de um Éden efémero.

A pedido de Mann, a câmara sensual de Dion Beebe continua experimentando a tecnologia digital, fotografando maravilhosamente a luz incidindo no mar tropical, relampejando nos céus e captando a noite num visual granulado que apesar de todo o realismo não atinge o requinte electrificante alcançado em “Collateral”, onde Los Angeles expelia uma vida mística que interagia com os protagonistas, de forma praticamente palpável. Apesar de não atingir a gravidade da opulenta majestade patente na Obra-Prima “Heat”, “Miami Vice” desliza majestosamente nas cenas de movimento visceral. Mann encontra sempre maneiras menos convencionais de filmar cenas convencionais, assente num instinto e estilos refinados para compor enquadramentos que deslumbram a visão e convocam a reflexão. Num febril espectáculo operático, consegue fundir música, cor e drama num filme com sequências de qualidade extática, frisando Cinema avant-garde no cerne de uma grande produção. Numa filmografia vincada numa obsessão pela actividade criminal e pelos arrevesados meandros da lei, Mann continua a estimular o público nestes trilhos familiares, mas a força mais perigosa e poderosa já não se esconde atrás da próxima esquina, ficando alojada em lampejos de amor impossível.

A conclusão do filme é silenciosamente brutal, como se nos separassem abruptamente de uma fracção da nossa vida. Revelando consistência temática, a sobriedade do filme galopa numa violência emocional. As cenas são longas, meticulosamente arquitectadas e elegantemente detalhadas sem desperdício de fotogramas. Numa atmosfera de violência inevitável, o único laço possível entre dois homens definidos pelo seu trabalho é uma solitária fidelidade profissional. “Miami Vice” representa outro poema fatalista de Mann, o Poeta da Urbe Nocturna.

14 Comments:

Blogger Dora said...

4 estrelas?? Tanto!
O filme tem planos espectaculares, lá isso tem.
Adorei a cena, no início do filme, onde há um tiroteio e se vê a perspectiva de dentro do carro, muito bom!

11:12 da manhã  
Blogger José Miguel said...

É perfeitamente natural que Farrell se encaixe melhor neste tipo de filmes pois é quase um retrato da sua vida real...

Mas só estou a falar pela análise pois ainda não vi o filme sequer, um pouco com medo de que seja mais um daqueles blockbusters para vender pipoca...

Admito que tenho altas expectativas para este projecto, veremos se se confirmam.

Mais uma vez uma boa análise, Francisco.

Parabéns!

11:13 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Dora: Essa cena é absolutamente magistral. A trepidação da câmara, o encaixe sonoro e a profundidade da focagem sugam o espectador para o centro da acção.
Ninguém filma acção como Mann.

José Miguel: Obrigado por mais uma visita.

Podes ir descansado à sala de Cinema, pois não se trata de um filme manhoso pipoqueiro. A excelência das imagens é tão brutal que muitos não conseguirão desviar o olhar da imagética profusa de Mann. A substância encontra-se bem incrustada, mas à perfeita disponibilidade da escavação analítica de cada espectador.

Se todos os filmes de Verão fossem assim...

11:32 da manhã  
Blogger Dora said...

Sim, não é nada pipoqueiro o filme. Embora eu coma sempre pipocas...mas em silêncio e sem incomodar ninguém!

Francisco: Há também uma cena muito boa onde a pessoa que está a ser baleada, está com a própria câmara, ou seja, não vimos a pessoa...muito bom. Não é plano picado, nem contra picado, mas também não é plano pessoal...eu aprendi na faculdade e não me lembro!

7:49 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Trata-se de um Plano Subjectivo.

11:30 da tarde  
Blogger Dora said...

Isso!!
Eu estava quase lá e tu entendeste-me!

1:18 da manhã  
Blogger André Carita said...

Já referi várias vezes que, na minha opinião Miami Vice tivesse estreado primeiro que Collateral, a opinião geral tinha sido bem melhor, visto que torna-se inevitável a comparação das duas obras de Mann. Collateral, foi na minha opinião um dos melhores filmes de acção que vi nos ultimos tempos mas Miami Vice ainda assim conseguiu-me surpreender em muito. Achei que tanto Foxx como Farrell (que como sabes não faz parte dos meus actores de eleição) tiveram um desempenho bastante credível e se em Collateral Foxx assumiu um maior protagonismo que Cruise, neste, o mesmo não se verificou. Ainda assim convém referir o dedo de Mann ao longo de todo o filme, desde as cenas de acção, à banda sonora (que em Collateral também era excelente!), e à constante adrenalina visual que de tão bem pensada que foi um gajo so consegue mesmo afirmar tratar-se de um estilo já próprio de Michael Mann.
Também gostei bastante... apesar de Collateral continuar no meu TOP!

Um abraço Francisco!

1:53 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Dora: Não foi complicado perceber onde querias chegar.

André Carita: Também prefiro "Collateral". Além de ser bem mais consistente como um lascivo buddy movie, existe nesse filme um terceiro protagonista: Los Angeles, lançando-nos um olhar misticamente travesso pelas lentes digitais de Mann.

Contudo, a sua Obra-Prima continua a ser o magno "Heat".

Abraço André!

10:06 da manhã  
Blogger brain-mixer said...

Com tanta gente a elogiar o filme, fico tentado em ir vê-lo às salas... Mas creio que vou esperar pelo DVD - e assim evitar as pipocas e os telemóveis :P

11:25 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

É um bom filme, a milhas de outros blockbusters com os quais pode confundir-se, mas não acho que seja excepcional. Não destoa na obra de Mann, o que já não é mau.

3:42 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Edgar: As pipocas andam todas viradas para super-homens e piratas.

Gonçalo: Concordo.

Helena: Muito obrigado, mais uma vez.
Quanto a Gong Li, aguardo a sua participação em "Curse of the Golden Flower", o novo projecto de Zhang Yimou.

9:10 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

A Gong Li...
Ora aí está uma boa razão para ir a uma sala de cinema. Quem diria que já está nos quarenta.

Não chega ao calcanhares de "Heat". Nem em termos de acção, de argumento. Mas talvez chegue ou mesmo ultrapasse em termos de ter sido bastante bem filmado. É o seu trunfo.

Mas sinceramente eu queria mais acção. Aquele tiroteio final não foi nada de especial.

Mas prontos tem outros argumentos.

Sem dúvida nada pipoqueiro. Deve ser uma desilusão para esses fãs da pipoca portuguesa.

Abraço

10:48 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

É um filme indispensável.

Abraço!

12:21 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Sinceramente, acho que está na moda dizer mal do Farrell. Contudo, além de constatar a qualidade do rapaz, ainda verifico génios cinematográficos convocando-o: Terrence Malick, Michael Mann, Woody Allen e Spielberg.

Eu entendo as críticas negativas até certo ponto, mas quando dizem que o seu trabalho neste filme é menos que brilhante... é a gota de água.

Abraço!

9:05 da manhã  

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