domingo, novembro 26, 2006

"Brick", de Rian Johnson

Class.:

Chiaroscuro Liceal
A leitura da História do Cinema e respectivos períodos pode ser feita a partir da noção de género. Mas o que será propriamente o Noir? Será realmente um género? Ou será um estilo, um ciclo, um fenómeno ou o movimento de uma época? Repleto de amargura existencialista, o Noir cinematográfico encontra-se imbuído de referências a outras artes, como a Pintura e a Literatura. Com raízes na cinematografia Expressionista alemã, o Noir reflectiu inicialmente a Depressão americana dos anos 30, mas não será o Noir um complemento visual com códigos temáticos, como o padrão dramático da sombra, o reflexo de indivíduos num espelho distorcido ou o uso da luz aludindo à ambivalência das personagens? A influência da corrente Noir pode ser descortinada através de visões particulares (como “Chinatown” de Roman Polanski) ou sub-géneros, como o Psycho-Noir patente em Lang (“M”), Lynch (“Blue Velvet”, “Lost Highway” ou “Mulholland Dr.”), Cronenberg (“Naked Lunch”), Fincher (“Fight Club”), Nolan (“Memento”), ou na recente trilogia de Park Chan-wook. Também será facilmente compreendida a presença Noir na Ficção Científica, como “Soylent Green” de Fleischer, “Blade Runner” de Scott, “Alien 3” de Fincher, “Twelve Monkeys” de Gilliam, “Dark City” de Proyas e até em “Minority Report” de Spielberg. Apelidar o Noir de ambíguo, onírico, sensual, impetuoso e misterioso, não seria simplificar demasiado o termo?

Brick” é o filme de estreia do escritor/realizador Rian Johnson, que no Festival de Sundance 2005 venceu o Prémio Especial do Júri para Visão Original. Confesso admirador da obra do novelista Dashiell Hammett, Johnson derrama inúmeros tributos ao escritor, quer no sussurro final que alude à sua curta história “The Girl With The Silver Eyes”, passando igualmente por “The Maltese Falcon”, quando Brendan pede a Laura para buzinar quatro vezes (longo, curto, longo, curto). Num excelso exercício de estilo, o estreante realizador derrama elementos da ficção Noir dos anos 40 numa ambiência escolar. Brendan (Joseph Gordon-Levitt emanando inteligência e sensibilidade num papel soberbamente executado) é um jovem estudante cujo acutilante intelecto o remete para um estatuto solitário. Percepcionando claramente os torvelinhos ocultos da escola, Brendan opta pela segurança da sua margem, ficando sem grande vida social com os restantes mortais. Mas quando de forma absolutamente inesperada a ex-namorada o contacta, desaparece e surge morta, o jovem fica obcecado pela busca da razão do seu assassinato, passando a contactar com pessoas que sempre evitou.



Envolto no triste hábito de verificar a utilização de adolescentes como matéria de comédias sexuais, telenovelas néscias e slasher-movies levianos que brotam às catadupas, surge finalmente alguém com olho clínico que vislumbra o círculo liceal como um meio repleto de vibrações Noir. Além de tamanha façanha, Rian Johnson percepciona claramente o facto de muitos adolescentes criarem as suas próprias realidades e ainda arranca portentosas interpretações aos seus jovens de serviço. Por muito estranho que pareça, o microcosmos liceal e o universo Noir têm uma afinidade indesmentível, asseverada por jogos de poder, conspirações dissimuladas, jogos de sedução e inveja de femmes fatales, intrigas bizantinas, paixões arrebatadoras e até o incontornável cigarro marca presença. Acompanhar a tradução destes arquétipos sob a visão de Johnson é deveras fascinante. “Brick” explora meandros Noir, desde a clássica brutalidade de confrontos mano-a-mano às fatalidades de amores perdidos. Apelando para uma rede de complexidade auto-irónica, Johnson injecta tensão numa fascinante mutação de cenários, entre o subúrbio americano emocionalmente vazio e um palco moral de proporções amplas. O cinismo Noir é utilizado para dramatizar raiva adolescente e como metáfora para o isolamento pré-adulto, respectiva insegurança e auto-destruição.

Em “Brick” existem incontornáveis reminiscências de Lynch e do trabalho inicial dos irmãos Coen, mestres na simbiose do sórdido com o risível. Johnson constrói de forma exemplar a atmosfera quimérica de uma tragédia surrealista cravada na dura realidade. A sua linguagem pode ser complicada para muitos, mas exacta afirmação pode ser anexada a um bom mistério. Inicialmente estranha-se, depois entranha-se e por fim torna-se inevitável, assegurando o argumento como um triunfo de atitude e perseverança. As personagens vagueiam num panorama onde a desolação e a dor os aguarda em cada esquina. À excepção dos cameos de um vice-reitor e de uma mãe, os adultos ficam à parte num universo governado pelas elevadas emoções da juventude, onde traições românticas são encaradas como um caso literal de vida ou morte. Paradoxalmente, existe divertimento estimulante nesta bruma de seriedade, neste sonho febril de um estudante com padrões criminais. Todavia, estes toques revelam-se judiciosos, afastando a ideia de bacoco e acentuando a acção sem a definir.
Responsável pela fotografia, Steve Yedlin estampa no filme uma cintilação de perigo que nos seduz para a teia de Johnson, esvaecendo lentamente o Sol californiano com quartos escuros adornados por velas, luzes trémulas e esmorecidos reflexos solares. O panorama é de desolação: o asfalto engole a população, existem grandes planos de um campo de futebol americano desamparado e de parques de estacionamento amplos, gerando um contraste sinistro entre o visível e o invisível. A solidão de Brendan é captada de forma igualmente soberba. Só lhe vislumbramos a testa no flashback do momento em que Emily rompe o namoro, pois a partir desse momento o seu tormento emocional e desorientação manifestam-se inclusive em vários planos dos seus passos. A composição sonora é igualmente digna de realce. Nathan Johnson (irmão do realizador) evoca sonoridades de Tom Waits, bem como alguns acordes Noir, elevando a excentricidade das acções. O peculiar bailado entre som ambiente e design sonoro resulta numa comunicação essencial da película, gerando ainda vibrações aurais. Explorando o factor audiovisual da Sétima Arte, Johnson edifica “Brick” com múltiplas camadas que requerem dissecação em revisionamentos futuros. Os espectadores que ignoram legendas e preferem acompanhar visualmente o filme sorvendo o inglês, irão deparar com uma linguagem sui generis. Além da textura verbal criada por Johnson ser fenomenal, tal mecanismo permite que o observador deambule pela imagética do filme, pensando visualmente de cena para cena num racional processo de informação audiovisual. “Brick” desafia a inteligência da sua audiência, incitando-a a discorrer conscientemente sobre as conexões dos tijolos que edificam a sua narrativa.

9 Comments:

Blogger Loot said...

Não tenho nada a acrescentar vim só mesmo para dizer que já vi e concordar que é muito bom.

11:44 da manhã  
Blogger RPM said...

olá camarada! Bom dia para o lar...

mas que descrição!! gostei do 3º parágrafo porque é uma descrição perfeita do mundo juvenil e das suas fantasias.

claro que estarei atento a este filme se por acaso aqui passar...

vou-te fazer um elogio! leio estes textos críticos de filmes que vais ver e, dou por mim a imaginá-lo..tal a pormenorização que fazes...Oléééé!!! Bem Latino

um feliz e santo domingo, camarada amigo!

abraço grande de amizade

RPM

11:47 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

ora aí está um excelente filme... gostei bastante tb! é diferente!

12:40 da tarde  
Blogger gonn1000 said...

5/5?? Achei que era um exercício de estilo bem feito, mas com falhas na construção das personagens, demasiado caricaturais e usadas apenas para fazer avançar os mecanismos de um argumento intrincado. Da próxima espero que o Rian apresente um filme com maior densidade emocional.

2:39 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Loot: De acordo, portanto.

Rui: Obrigado por tão amáveis palavras, mas nada como colocar os olhos e sentidos bem despertos neste filme.
Abraço!

Helena: Além de surpreendente, no meu humilde parecer, este filme é um dos melhores do ano.

membio: Uma agradável surpresa e um filme que merece um Culto.

Gonçalo: Numa frase:

É perfeitamente estranho e estranhamente perfeito.

5:28 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Pois, de facto os teus textos são tão bons que, para além de aguçarem a curiosidade em ver o filme, deixam uma sensação de prazer pelas descrições apresentadas. Muito bom o texto, sem dúvida, agora resta o principal, ver o filme.

10:26 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Muito obrigado pelas palavras.
Não percas "Brick", essa agradável e original surpresa.

10:06 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

O que me chamou a atencao, alem da nota perfeita para o filme, foi o cartaz. Bastante interessante…Sem duvida. E pena e aquela frase, “a detective movie”by…
Sim, porque essa frase vai decidir se, realmente queremos ver o filme ou nao. Como e de detectives, ja la estou. Come on…
Enfim…

Bem, o filme marcou-te mesmo. Um “Noir” moderno e sempre um acontecimento. Quando voltar do fim do mundo tenho que ver se ainda o consigo ver. Mas de certeza so em DVD. Ja estava curioso quando li sobre a sua recepcao nos EUA mas agora tenho a certeza. Obrigado Francisco.

Ps:Desculpa a falta de acentuacao mas os teclados no “fim do mundo” nao o permitem. Hehehe

11:24 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

É imperdível.

Abraço Pedro!

6:48 da tarde  

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