sábado, novembro 04, 2006

"Marie Antoinette", de Sofia Coppola

Class.:

Brincar às Barbies, versão da realizadora
Será necessário existir nos anais da Sétima Arte uma Marie Antoinette em variante pop-rock-chick, com posters que se assemelham a publicidade da montra da Bershka concebida por uma moçoila detentora de um reles fotolog? Necessário ou não… a sua natividade é irremediável. Será possível obter uma refeição decente e completa à base de bolos e guloseimas? Sofia acha que sim. “Marie Antoinette” será para muitos uma obra histórica de autor com uma requintada sensibilidade moderna. Para outros será um produto indigente. Méritos técnicos à parte, esta terceira longa-metragem de Sofia Coppola não passa da versão cinematográfica de uma brincadeira pessoal com Barbies de carne, osso e maquilhagem, com Versailles sendo utilizado como a casa na qual as bonequinhas se pavoneiam, sob a manipulação da menina Sofia.

Lost in Translation” seguia uma bela e jovem rapariga loira, enclausurada num casamento infeliz, que se encontra desorientada num país estrangeiro. “Marie Antoinette” é sobre… basicamente o mesmo. Kirsten Dunst desempenha Marie, a adolescente austríaca arremessada para o interior da corte francesa, para cimentar a união diplomática entre as nações através do casamento com o jovem delfim Louis Auguste. Os momentos iniciais revelam parte da potencial subtileza cinematográfica de Sofia, tão bem explanada no magnífico “The Virgin Suicides”. Inicialmente existe uma certa ode ao prazer sensual e no instante imediato seguimos a jovem sendo lentamente decepada da sua jovialidade pueril, retirada da sua terra natal, passando pela quarentena diplomática de um ritual real, alienada entre a multidão da nobreza e vagueando pelos corredores sussurrantes de Versailles. São cenas belíssimas, que acompanham o isolamento asfixiante de Marie.

Contudo, para quem apreciou a aura graciosa de “Lost in Translation” e a complexidade dramática de “The Virgin Suicides”, este “Marie Antoinette” é uma desilusão de proporções históricas. A partir de determinado momento a indigência de Sofia aflora pelo filme com mesclas de petulância que decapitam o produto final e respectiva absorção. É uma penúria que evoca o embaraçoso segmento de “New York Stories” (intitulado “Life without Zoe”), escrito por si para seu pai Francis realizar, no qual também foi responsável pelo guarda-roupa (lá está a inseparável afeição com as Barbies). É uma enorme preguiça em fazer cinema, limitando-se a disparar imagens arbitrárias (mera fotografia caprichosa de vestidos, jóias, perucas, sapatos, penas e bolos), com múltiplos cortes que realçam o facto da película ser um mero portfolio extravagante. É uma debilidade orientadora que evoca a débil participação como Mary Corleone em “The Godfather: Part III”, numa das maiores demonstrações de amadorismo interpretativo do Cinema contemporâneo.


O feitiço inicial dissipa-se à medida que a ingenuidade de Sofia começa a relacionar de forma prosaica factos históricos. O que não deixa de ser irónico, uma vez que a cineasta evidencia pretensão sonora e visual, numa demarcação dos preceitos históricos. O que torna a tentativa de Sofia Coppola tão oca quanto a personagem que pretende retratar é o facto da cineasta não conseguir distinguir História de personalidade e personalidade de guarda-roupa. A sua paixão pelo glamour superficial congela a substância, pasmando por tamanha trivialidade. Até a utilização da banda sonora, um mashup de Ópera clássica com pop-rock-new wave que inicialmente aparenta arrojo, é atabalhoadamente executada. “Fools Rush In” começa a tocar depois de Marie conhecer o engatatão sueco; “I Want Candy” acompanha uma câmara vagabunda que percorre vestidos e doces; a música “What Ever Happened?” dos The Strokes acompanha a correria devaneada de Marie pelos corredores do palácio. A utilização musical, além de óbvia (os direitos para “Girls Just Want to Have Fun” de Cyndi Lauper não deviam estar disponíveis), ostenta uma elaboração digna de um videoclip da MTV, com proporções idênticas de nula substância.
Sofia imbui “Marie Antoinette” com antinomias, presumivelmente desejando que encaremos o filme com um misto de seriedade e ligeireza. Todavia, a condescendência torna-se inexequível num universo tão frívolo. O próprio palácio de Versailles é transformado num liceu, pelo qual deambulam professores rigorosos, sonhadores, mamãs encarregadas de educação e amigas do peito. Até os actores articulam palavras de uma forma formal equivalente a uma peça teatral escolar, mas torna-se irrelevante falar de desempenhos, quando a vertente estilística absorve tudo em redor. Os actores desfilam como marionetas, alguns ao sabor de cameos fugazes e nenhuma personagem ganha densidade real, o que não deixa de ser irónico, uma vez que certas figuras retratadas foram mesmo reais.

Ela nasceu para uma vida privilegiada, rodeada de conforto, fama e nas suas veias circula o sangue real de uma família com um orgulhoso legado. É jovem e quando se libertou da asa protectora familiar para dar os primeiros passos sozinha, descobriu que nem todos a adoram. Não falo de Marie Antoinette… falo de Sofia Coppola. Uma cineasta que também já foi presenteada com vaias que equivalem de forma bem mais amena aos ferozes apupos que Marie Antoinette sofreu em 1789. A inércia de Sofia iguala a da sua protagonista. Por exemplo: em “Chungking Express”, o brilhante iconoplasta Wong Kar-wai utiliza a “California Dreamin’” dos The Mamas & the Papas de forma surpreendente, mas bem mais consistente num filme igualmente estilístico, no qual o magno Christopher Doyle pincela Hong Kong numa bruma néon, laranja, destorcida ou flamante, jogando com a exposição e a velocidade, como um cineasta corriqueiro joga com o argumento. Em “Marie Antoinette” o design de produção é maravilhoso, mas a cinematografia não imortaliza convenientemente o panorama criado, graças a uma tremideira desfocada com objectivos artísticos duvidosos. Sofia já exibiu anteriormente talento para expor localizações desoladas que recalcam espíritos amargurados no cerne de transacções humanas. Infelizmente, “Marie Antoinette” não passa de uma série de vinhetas esparsas em vez de uma história coesa.

16 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Foi assim tão mau? Sei que o filme foi assobiado em Cannes, e também sei que Dunst não é nem de perto nem de longe uma grande actriz, muito menos protagonista, mas será o filme merecedor de um carimbo de "filme para as miúdas"?

Bem vou esperar para ver...

Cumps

1:20 da tarde  
Blogger Loot said...

Não vi i filme ainda, vim só mesmo dizer que é já amanha Francisco, vai ser um concertão. Abraço

1:25 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Against: Não lhe colo esse carimbo. É sim, no meu entender, um filme mimado de alguém que recebe um orçamento cortês.

Digamos que é um filme que divide opiniões e que no meu humilde parecer é o pior filme da Sofia, pois revela-se completamente desnecessário, uma vez que a cineasta já explorou com maior coesão o tema aflorado.

Mas aconselho o seu visionamento, graças à disparidade de opiniões que proporciona.

Cumprimentos.

Loot: Verdade, caro José. Amanhã, parto de manhã para a capital, a fim de presenciar o concerto dos magnos Tool. Será uma noite para recordar... sem dúvida!

Abraço!

2:44 da tarde  
Blogger RPM said...

Meu grande amigo destas andanças.....

esta semana tem sido devastadora em acontecimentos....dança, teatro, clássica, jazz, problemas no 'rato'....trabalho...jazz e estou agora por um bocadinho para te cumprimentar e desejar um feliz fim de semana na companhia da tua princesa em Zen ou Oz....

aconselho Oz, que é muito engraçado...vê-se gente muito apaixonada

abraço grande de amizade, Francisco

RPM

3:38 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Meu caro Rui, vou para Oz com a Ninfa, ornamentando o serão com banda sonora de Tool ao vivo.

Abraço estimado amigo e votos de um óptimo fim-de-semana!

3:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Quando soube que o filme era uma mistura de épocas, desinteressei-me, pois gosto de filmes históricos, biográficos...mas com o teu comentário, qualquer ponta de interesse que ainda houvesse..."foice"...

Beijos e um óptimo fim de semana

4:33 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Não desaconselho propriamente o filme, pois tenho amigos (e estimados colegas da blogosfera) que se apaixonaram pelo mesmo.

Bom fim-de-semana!

4:52 da tarde  
Blogger Hugo said...

Eu não me apaixonei por ele. Mas convenhamos que é o desenvolvimento lógico da temática abordada em Lost in translation. Sofia já e uma autora (se dúvidas havia, agora desaparaceram) e das boas.

9:02 da tarde  
Blogger André Carita said...

Um filme que a mim passou-me completamente ao lado... Só o cartaz ofusca, a actriz não entusiasma e a realizadora bem... prefiro visionar outra x o Virgens Suicidas para continuar a ter uma opinião positiva a seu respeito!

Um grande abraço Francisco e votos de um excelente concerto! (aliás a esta hora o concerto ja foi :P)

5:13 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Hugo Alves: Fico então à espera do seu próximo passo.

180min: Infelizmente... saí bastante defraudado.

Helena: E respeito com enorme apreço a tua opinião. Mas para mim, Sofia Coppola demonstra com este filme uma total preguiça em fazer Cinema (dispondo ainda de um belo orçamento) e a espaços o seu visionamento assemelha-se a um mero slideshow pomposo. O tema que ela pretende seguir enquanto autora já foi mais convenientemente apresentado pela mesma, com outro nível de consistência.

André: Muito obrigado pelos votos de bom concerto (apesar de realmente já ter passado :P).

Aquele abraço!

2:02 da tarde  
Blogger C. said...

Bem, depois do Hugo e da Helena, sabes quem se segue ;)

11:56 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Vocês são uns sortudos. Não desperdiçaram preciosos minutos da vossa existência... ;)

11:08 da manhã  
Blogger Pedro_Ginja said...

Não costumo dar este conselho muitas vezes mas acho que ninguém deve pensar em deixar de ver um filme porque alguém tem uma opinião pior sobre o mesmo.

Por isso Isa, não sei se és fã da Sofia mas se és não deves perder.

Outra coisa, isso de dizer que a Kirsten Dunst é má actriz é só conversa fiada e à excepção de uma cena no filme que não gostei da sua interpretação está bastante bem. Não é nenhum portento mas tem qualidade.

E dizer que este filme não tem rigor histórico. Trata-se da história de uma adolescente que ficou rainha de França muito nova. Só poderia ser o filme de uma superficialidade contagiante. Eu gostei. Não amei e sem dúvida é o seu pior filme mas tem qualidade.

O filme de uma pessoa mimada e superficial só poderia ser assim. Perfeito a escolha.

E como sempre Francisco é um prazer discutir assuntos de cinema contigo

10:21 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Também foste um dos sortudos que deu o tempo por bem empregue.

Como deves ter lido nos meus prévios comentários também nunca desaconselho um filme, pois a Arte atinge-nos de forma Supra-Pessoal. O que para uns é lixo, para outros pode perfeitamente ser ouro.

Quanto ao rigor histórico... o que me fascinava quando li sobre isto era o facto de Sofia Coppola pretender ser arrojada e demarcar-se de pergaminhos de rigor histórico. Nos minutos iniciais ela prova estar no bom caminho com essa audácia, mas logo depois descarrila ao injectar de forma imprecisa e abrupta essa mesma historicidade que pretendia evitar: apoio financeiro francês à guerra, a efémera relação com o conde sueco, a sua mítica tirada («Eles que comam bolo») inserida de forma atabalhoada como algo que se despenha sem pára-quedas, o rebento da relação com Louis nado depois de resolverem o problema de copulação sem o espectador perceber como...

Enfim... pouco consistente... demasiado superficial, ao estilo videoclip da MTV.

Abraço!

9:33 da manhã  
Blogger Cataclismo Cerebral said...

Desiludiu-me, sendo a realizadora quem é. As personagens são todas elas de cartão, apesar de considerar que a luminosa Kirsten Dunst se esforçou. Creio que a actriz bem tentou incutir algum punch dramático na personagem, no entanto o argumento é tão arcaico que apenas em algumas cenas vislumbramos a sua dimensão humana (quando recebe a carta da mãe e quando passeia com as crianças no jardim). Sim, concordo que o filme tem uma estética de videoclip meets passerelle de alta costura e que todas as emoções são como as atitudes de Marie Antoinette, ou seja, fugazes. Relativamente à banda sonora, que foi tão criticada, só tenho a dizer que é dos pontos mais fortes do filme: quanto a mim, reforça a ideia de que a situação vivida por Marie Antoinette poderia perfeitamente encontrar um paralelo na era contemporânea, em que qualquer sociedade obsoleta e retrógrada pode exercer opressão sobre a condição feminina.


P.S.: Aconselho-te a veres o "10", de Abbas Kiarostami, sobre a actual condição feminina no Irão. O filme tem aquele lado voyeur, que creio que gostas.

Abraço

5:17 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Já vi o filme de Kiarostami.
É uma das obras imperdíveis da sua interessante filmografia. Uma apaixonante reflexão meditativa sobre as nuances da observação, articulando sentimentos de admiração pelo minimalismo gracioso dessa janela voyeur.

Abraço!

10:24 da manhã  

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