sábado, dezembro 30, 2006

"Babel", de Alejandro González Iñárritu

Class.:

Elos de dor

Alargando a sua perspectiva sobre os predecessores “Amores Perros” e “21 Grams”, Alejandro González Iñárritu conclui com “Babel” a trilogia de vidas intersectadas que edificou em parceria com o argumentista Guillermo Arriaga. Tal como o título implica, “Babel” relata a dificuldade de comunicação entre o Homem, mas apesar da história se desenrolar em três continentes e escutarmos cinco línguas discrepantes, a linguagem está longe de ser o principal estorvo. A exploração é centrada nas convicções culturais, na forma como as nossas diferenças recalcitrantes nos afastam de uma conexão humana genuína. Narrando quatro histórias distintas, distanciando suas personagens de forma linguística e geográfica, cunhadas e lapidadas pelos caprichos transgressores culturais, Iñárritu vai destapando lentamente o véu que oculta o elo cronológico e casual que as une.

As implicações bíblicas do título (Genesis 11:1-9) referem-se a uma Humanidade unida através de uma só língua na edificação de uma torre que rompesse os céus e alcançasse Deus. Irado com a arrogância altiva do Homem, Deus baralhou os idiomas cessando a cooperação da gigantesca construção. Iñárritu aplica o conceito de Babel ao actual panorama sócio-político, onde uma extensa Manhattan destas torres é erigida por colectividades daninhas, que poderão ser repentinamente derrubadas por credos que dividem o Homem desde o raiar dos tempos. Nós acentuamos diferenças em vez de celebrarmos uniformidades distintas. Iñárritu sonda bem fundo no vácuo existencial das suas personagens, para desvendar as múltiplas camadas humanas de tristeza e rancor pela conjuntura da sociedade mundial. Esquadrinhando a complexidade do vínculo entre pais e filhos, o realizador mexicano projecta uma visão global contemporânea. Existe uma inaptidão universal na correspondência entre maridos, esposas e respectivos filhos. E quando as palavras não embalam a alma, o corpo torna-se uma arma, um convite à exterminação progressiva. “Babel” emana um poder silencioso que se fará sentir veementemente no encetar das ruminações intelectuais e espirituais.



Babel” é uma jornada de montagem virtuosa. Cortes precisos, mudanças de tom criteriosas e close-ups vorazes que desabam e fundam de forma apelante um autêntico império de sentidos. Elíptico como um sonho, directo como a trajectória de uma bala, “Babel” coloca o dedo numa série de feridas que flagelam a humanidade. Palmilhando as montanhas argilosas de Marrocos subjugadas pelo murmúrio de ventos errantes, pasmando na visão fluorescente de uma Tóquio tecnológica e inebriando no calor vibrante mexicano, cada local possui a sua aura característica. Com o apoio de Rodrigo Prieto na fotografia e Gustavo Santaolalla na assoladora composição sonora, Iñárritu estabelece um sentido de espaço concreto, gerando o sedutor bailado entre imagem, som e argumento. Mesmo as sequências individuais são visceralmente distintas: como a imagem de dois rapazes horrorizados com a tragédia despoletada numa brincadeira ingénua, a tensão asfixiante da fronteira entre os Estados Unidos e o México após momentos de festividade e a euforia esvoaçante de uma rapariga (Chieko) que se converte momentos depois num isolamento opressivo. A montagem funciona aqui como uma criadora abstracta de sentido. Iñárritu reverte planos num devir temporal, articulando lógicas imagéticas consoante suas preocupações intelectuais e emocionalmente familiares. Arriaga é um argumentista torrencialmente inventivo, idóneo na articulação artística das diversas linguagens que interagem na comunicação humana e ambos (Iñárritu e Arriaga) desafiam as potencialidades dos mecanismos que determinam a produção de sentido, propondo tessitura crítica sobre a imagem e obtendo na sua plateia atenta leituras adensadas.
Iñárritu crê de forma abnegada no poder ilimitado do meio cinematográfico, explanando a sua fé no Cinema como Linguagem Universal. Com uma fé inabalável no intelecto e sensibilidade do seu público, ele prova que um filme de montagem é também um filme a ser decifrado nas remontagens que a mente interpretante do espectador articula. É nesta portentosa exploração que este fascinante cineasta encaixa aparentes intermitências, utilizando o seu léxico audiovisual para encontrar um elo, um idioma comum. Um raio de emoções decifráveis por gesticulações e expressões. O corpo como espelho da alma. As palavras poderão revelar-se ininteligíveis mas a eloquência de uma expressão de dor, medo ou agonia é inolvidável. Especialmente quando nos sentimos sufocados pela solidão, num mundo que não se esforça para alimentar uma associação connosco. Poderemos desenhar inúmeras fronteiras num mapa, mas existirá sempre um elo de ligação comum entre o Homem, uma linguagem universal: a Dor. O desespero agonizante do pai marroquino não necessitou de legendas, bem como o choro de Amelia. A dor literalmente nua de Chieko é tão transparente quanto a frustração aflitiva de Richard. E mesmo uma velha marroquina assimila perfeitamente o padecimento excruciante de uma turista americana. É o sofrimento que nos liga, a impossibilidade do Amor, a impossibilidade de sermos tocados por Amor, a impossibilidade de tocarmos alguém com Amor, a impossibilidade de um Amor perpétuo. Iñárritu projecta em Chieko a aceitação da dor que resulta na tentativa de comunhão entre os povos. Numa das melhores cenas do ano cinematográfico (porventura a melhor), Chieko jorra as contradições da sua existência numa discoteca. Um dos sentidos encontra-se exonerado da explosão musical e entusiástica em seu redor, enquanto superficialmente o resto da sua essência tenta escoltar o êxtase da multidão. Ela anseia pelo acolhimento sexual de alguém, mas receia o verdadeiro significado de se tornar uma mulher. Lambe um dentista, atiça adolescentes e oferece o corpo a um detective, mas apenas revela a sua verdadeira natureza no abraço aconchegante do pai. Após um final perfeito, os créditos finais revelam que Iñárritu dedica o filme aos seus filhos («the brightest lights in the darkest night»). Que todos consigamos encontrar a nossa própria Luz e a afaguemos no topo da maior torre de Babel, bem acima de todo o sofrimento que empesta este planeta.

20 Comments:

Blogger Francisco Mendes said...

Que melhor conclusão de ano poderiamos desejar nas nossas salas?
Portentoso!

11:51 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Talvez seja mesmo o melhor filme do ano, não? Só sei que os dias vão passando e eu não consigo deixar de pensar em Babel como uma das mais violentas e compensadoras experiências cinematográficas dos últimos tempos. Gostei de ler ;-)

12:38 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

É certamente UM dos melhores do ano. É precisamente essa remontagem mental do filme que indico. Uma daquelas raras obras que alastra progressivamente pelas artérias da nossa consideração, cogitação e emoção.

12:53 da tarde  
Blogger Miguel Galrinho said...

É escusado dizer isto, depois do que já escrevi no meu blog e no cinema2000, mas de qualquer forma: concordo em absoluto com o texto, tratando-se de uma obra-prima arrebatadora e de um dos melhores filmes do ano. Vi-o já há mais de um mês numa AE e infelizmente ainda não tive oportunidade de o rever, o que quero fazer ainda em cinema. Uma obra obrigatória que, infelizmente, está a ser muito mal tratada pela crítica portuguesa.

Cumprimentos

1:39 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Também me custa verificar Monumentos Cinematográficos da minha predilecção maltratados, mas (como me farto de defender) a contemplação artística é supra-pessoal e como tal deverá existir um código de respeito entre apreciações divergentes... um pouco o que Iñárritu explora neste "Babel" de forma global e intimamente pessoal.

Quanto ao revisionamento... esse é deveras obrigatório! Não apenas in loco, mas também in cogito.

Cumprimentos.

2:26 da tarde  
Blogger MPB said...

A espaços portentoso e a espaço excessivamente pretencioso. A realidade é uma barreira intransponível. Muito ficará por dizer e muito foi dito, mas a musicalidade da montagem não chega para esconder algumas coisas.

Cumprimentos

9:10 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

é um bom filme, com uma história que mantêm um fio condutor interessante até ao final, apesar de o achar um bocado arrastado. Entre este e Children of Men, escolho o segundo como candidato à selecção final deste ano...

10:35 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

5 estrelas?? Eu não concordo. É um bom filme, com cenas que exploram bem o dramatismo das ocorrências humanas que decorrem no filme, mas daí a ser um óptimo filme, vão dois passos. Talvez por não ter ainda visto os dois anteriores filmes de Iñárritu esteja talvez distanciado deste Babel. Um filme que até aqui (realizado por um mexicano) mostra o "poderio" dos States (poder-se-há dizer isto?): Com tantas desgraças, quem sai (quase) ileso são os próprios americanos! O casal Pitt e Blanchet seguem vivos para casa, os filhos são resgatados vivos e seguros para casa e quem resta? Os emigrantes mexicanos que são deportados e retirads qualquer dignidade humana, marroquinos assassinados e/ou humilhados, japoneses deprimidos e infelizes. Os americanos ficaram-se a rir em torno de uma denúncia ao alarmismo terrorista.

Em contraponto, "a linguagem está longe de ser o principal estorvo" só se for para os americanos :P Nós já fomos educados a ver filmes legendados (e sorte a nossa por isso!).
Óscares? Só se for em representação. Aí sim, juntamente com The Departed tem todos os trunfos na mão.

11:02 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Não quero com isto dizer que esteja a deitar abaixo a tua crítica, pelo contrário! Gostei do filme e gostei ainda mais de ler a tua análise onde ressalvas muito bem os pontos positivos do filme. Explicaste o porquê das tuas 5 estrelas ;)

Abraço!

11:04 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ola Francisco

Fui ver o filme ontem à noite e adorei! Sabes que no final do filme ate bateram palmas..tipo aterragem de avião...:p

Bom, mas eu vim mesmo para te deixar um grande beijinho e desejar um 2007 ainda melhor!

10:55 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Bom ano novo, Francisco! :)

3:54 da tarde  
Blogger Nuno Cargaleiro said...

para mim, na minha rubrica destaquei-o de entre os melhores filmes de 2006... é brutal e totalmente angustiante em alguns momentos... é filme para ver, rever, aconselhar, e recordar...

9:39 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Ne-To: É claramente um filme que divide opiniões, longe de uma facilitada vertente consensual.

Cumprimentos.

membio: Opiniões... não é verdade?

Edgar: Esse segmento dos americanos não será um dos mais fiéis retratos do panorama hodierno?

Mas compreendo perfeitamente a tua opinião.

Abraço!

Lauro António: Será complicado marcar presença no Festival, mas estou a fazer os possíveis para desmarcar compromissos.

Abraço!

Isabel: :)
Bom 2007 para ti também!

Nuno Pires: Votos de um próspero 2007, Nuno! :)

Nuno Cargaleiro: Plenamente de acordo.

9:08 da manhã  
Blogger gonn1000 said...

Não tem a espontaneidade de "Amor Cão" nem uma carga dramática tão apurada como "21 Gramas", mas o que tem basta-lhe para ser um dos melhores do ano. Também acho que a recepção crítica por cá foi injusta.

11:06 da tarde  
Blogger Tiago Costa said...

Belo texto, absolutamente de acordo. Magistral filme de Iñarritu.

Cumprimentos

2:58 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Gonçalo: Do meu ponto de vista, também a considero injusta (a recepção nacional). Mas cada cabeça, sua sentença.

Tiago Costa: Um dos melhores de 2006.

Cumprimentos.

9:03 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

boa crítica, escrita com coerência e estilo. melhor ainda é a obra prima q inharritu nos deu.não tenho dúvida q se trata de uma das melhores películas dos últimos anos.uma confusão de cores volumes, sons , sentidos línguas, um verdadeira torre de babel.a realidade é um escandalo e o acaso não nos protege, antes: nos destrói.

9:27 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Absolutamente de acordo com o teu maravilhoso comentário.

9:07 da manhã  
Blogger Ana Macedo Lima said...

Sobre "Babel", finalmente, um texto que vale a pena ler.

5:31 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Obrigado!

9:14 da manhã  

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