sexta-feira, fevereiro 09, 2007

"Little Children", de Todd Field

Class.:


Purgatório suburbano

Perdida num casamento desprovido de amor, Sarah (Kate Winslet) ganha atracção por Brad (Patrick Wilson), um pai desempregado que desespera por momentos de individualismo juvenil, enquanto sua esposa (Jennifer Connelly) roga pelo seu amadurecimento, incitando-o a estudar para concluir definitivamente o curso. Sentindo na pele o atrofio dos subúrbios, ambos embarcam num romance que enleva Sarah a explorar o seu intelecto adormecido, bem como a sua volúpia sexual, enquanto Brad readquire significância juvenil. Entretanto, o bairro é presenteado com a chegada de Ronnie (Jackie Earle Haley), um ex-presidiário acusado de práticas ilícitas frente a crianças. Defendido pela mãe num território de vizinhos enraivecidos que exigem o seu extravio, Ronnie batalha pela recuperação do seu lugar no mundo, inseguro quanto à supressão dos seus impulsos depravados.

Little Children” é baseado no romance de Tom Perrotta, autor de “Election”, que por sua vez deu origem ao filme de Alexander Payne. Todd Field compõe um ambiente hermético, elevando o artifício para erigir um mundo sufocado por suspeições e explorando dinâmicas familiares abaladas por interferências externas. Este é um conto rico em nuances, metáforas e ironia, com requintes de farsa doméstica, que se fixa em três casais, dois unidos pelo matrimónio e um unido pelo laço maternal. Após o excelente “In the Bedroom”, Field demonstra fascínio pelas personagens vagueando por rituais estéreis, numa fábula moral sobre as armadilhas que o ser humano arma à sua identidade quando se recusa a crescer. As crianças que o título original (“Little Children”) menciona não são os filhos… são os próprios adultos. As crianças propriamente ditas são envolvidas de forma tangencial, sobretudo na conexão dos adultos, pois não passam de peões nas perseguições falhadas de felicidade dos seus pais. O foco é orientado para os adultos e respectivos comportamentos infantis, numa obstinada recusa em amadurecerem inseridos numa cultura obcecada com a juventude.



Apesar de alguns espectadores acusarem Ronnie de servir como um desvio escusado do melodrama romântico central, encaro esta personagem como um elemento-chave de “Little Children”. A maioria das personagens mente e adultera a sua essência, mas Ronnie representa o único ser humano absolutamente sincero consigo próprio. A dose ambígua que ministra, dilata temas de julgamento e percepção patentes na narrativa. A química entre Jackie Earle Haley e Phyllis Somerville (mãe de Ronnie) é enternecedora. Jennifer Connelly faz o que pode com umas linhas de texto algo preguiçosas, mas o caso de ócio gritante encontra-se no papel do marido de Sarah, apresentado como um unidimensional cyber-porno-dependente. Wilson emana impecavelmente a faceta ingénua da sua personagem enquanto desperta gradualmente propósitos de atracção, mas o coração do filme é Winslet. O filme retorna sempre à lucidez de Sarah, uma mulher que mortificou a sua sensibilidade feminina. Ela tem perfeita noção das consequências da sua acção, mas é sugada inevitavelmente pelo centro de gravidade de Brad, pela ideia de salvação, pela guarida contemplativa.

Little Children” retrata bairros inconfortáveis de sexualidade, explorando vielas de adultério e becos de perversão. Povoado por adultos com máscaras de maturidade e segurança que ocultam desconfortos íntimos, estes seres mais assustados que crianças percorrem travessas existenciais num compasso moral que expõe a sua perdição. Os pais não reconhecem suas necessidades, nem as premências de seus rebentos, mas julgam-se versados no juízo de Ronnie. Esta é uma história sobre a forma como julgamos os outros, sobre a forma como somos julgados e sobre a forma como nos auto-julgamos. Todavia, para um filme que desafia expectativas, o seu final torna-se algo complacente. Durante mais de duas horas escoltamos crianças ignoradas, suspiros devassos, perversão silenciosa, impulsos de tragédia e pregações visuais de libertação, mas a resolução não passa de uma demonstração de condescendência. A alusão ao romance “Madame Bovary” de Gustave Flaubert é escancarada num vácuo de subtileza na conexão temática e mesmo a narração que transborda do filme, resulta numa desnecessária amplificação literária que seria melhor aplicada numa série televisiva como “Desperate Housewives”. “Little Children” é daqueles filmes mais fáceis de admirar que amar.

9 Comments:

Blogger RPM said...

Olá amigo Francisco!

às tantas, aquele que tem de ser o mais verdadeiro para poder 'sair por cima' de uma situação que é negra à vista de todos é o Ronnie!!!

as outras personagens também as encontramos nos nossos contactos diários da rua, do prédio, do trabalho.....

abraço Amigo!

RPM

10:23 da manhã  
Blogger Davi G. Araújo said...

Muito bom esse blog! Textos afiados e bastante pertinentes! Gostei muito! Visitarei diariamente!

Abraços!

12:01 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Rui: Bom início de semana Rui.

Abraço!

Davi Gustavo Matias: Muito obrigado pelas palavras de apreço.

Abraço!

11:18 da manhã  
Blogger Controversus said...

Gosto de seus textos e comentários. Vê-se que é um estudioso do assunto.
Belíssimo esse cartaz do filme "Little Children".
Sugeri a visita de seu blog em meu blog coletivo, veja o post.

Fabíola Corrêa

7:26 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Muito obrigado e bem-vinda. Mas não me apelide de estudioso. Sou apenas um admirador, um apaixonado pela Sétima Arte. Estudioso... soa-me mal... :)

9:48 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Olá de novo caro Francisco,
Mais uma das tuas críticas em que eu acabo por discordar de algumas coisas e corroborar outras.
Gostei bastante do teu parágrafo dedicado às personagens, partilhando da tua apreciação.
Quanto às críticas negativas que fazes ao filme, e o final da tua análise, devo dizer que também achei o final despropositadamente "leve", mas não creio que retire mérito ao conjunto. Aliás, sinto que preciso de um revisionamento para poder assimilar por inteiro o final algo "esperançoso" do filme...embora já me pareça que tem algum sentido. É a prova de que as personagens brutalmente humanas e tão passíveis de críticas não foram julgadas, apenas mostradas, sem mordacidade ácida, apenas com fria humanidade...
É mais fácil admirar que amar, certamente que sim. Eu diria que é um filme impossível de amar, tal é a forma como nos incita a reflectirmos na nossa própria existência contemporânea. Mas também por isso, é uma obra poderosa e notável. Até agora, o meu #1 de 2007.

7:08 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Olá Helena!

Sim, existe uma ligeira divergência na forma como sorvemos a película. Não considero o filme mau, mas também não o coloco num altar. Entendo perfeitamente as razões que enlevam este filme na contemplação de alguns espectadores, todavia, na minha consideração, existem exemplos bem superiores do sufocante e silencioso grito suburbano.

Bem-vinda de volta! :)

8:21 da manhã  
Blogger Mafalda Azevedo said...

Hello Francisco,

Gostei muito do teu texto. Para ser precisa, fui gostando cada vez mais ao longo de cada parágrafo e depois decidi relê-lo. Os meus parabéns pela fluência no que toca a análises críticas e a apreciações emotivas. Muito bom mesmo!
E quanto ao filme… Aquele narrador não está ali a fazer nada, pois não? Parece que nos sufoca a imaginação.

Até breve!

5:42 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Olá Mafalda,

Sem dúvida. A expressão que utilizas para descrever a utilização do narrador não poderia ser mais adequada: «Sufoca a imaginação».

Até breve.

10:41 da manhã  

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