sábado, abril 21, 2007

Freeze Frame



Não é à toa que os galardões mais importantes do Cinema espanhol recebem o nome de um pintor. Francisco de Goya foi um artista singular, cuja fervura criativa se desenvolveria numa época de extremada convulsão social. Quando contraiu uma doença séria e desconhecida, ficando temporariamente paralítico, parcialmente cego e totalmente surdo, Goya perdeu sua vivacidade, dinamismo e autoconfiança. A alegria desapareceu lentamente de suas pinturas. As cores tornaram-se mais escuras. O seu modo de pintar ficou mais livre e expressivo. Era o início do período das suas Pinturas Negras. Conhecer, reflectir e vislumbrar as sinuosidades de sua genialidade, ilumina sequências cinematográficas que evocam algumas das suas obras, reflectindo o seu raio de influência na Sétima Arte. A primorosa cena do Homem Pálido no filme de Guillermo del Toro, “El Laberinto del Fauno”, é claramente inspirada no seu quadro “Saturno devorando a un hijo”. Saturno é o equivalente da Mitologia Romana para o grego Cronos (nome da primeira longa-metragem de Del Toro), a personificação do tempo. Além de constituir uma referência aos conflitos internos da Espanha em pleno reinado absolutista, o quadro também representava um reflexo da degradação física e mental de Goya, uma vez que constatava o terror solitário da sua mortalidade, a impossibilidade de fugir ao tempo, a certeza que mais tarde ou mais cedo seremos devorados pelo tempo. Quem contemplar minuciosamente o quadro não conseguirá ficar indiferente à expressão do deus mitológico. Os olhos inquietos reflectem uma mistura de ódio, medo, loucura e desespero. As mãos como garras reivindicam o olhar do espectador. Intenso e visceral, o segmento de Del Toro apreende todo este poder expressivo em filme, graças à excelência do trabalho de perspectivas, dos ângulos e movimentos de câmara, da tensão do tempo (Cronos, lá está) que limita a tarefa de Ofélia, da tensão do espaço (a pilha de sapatos infantis), do calor falsamente tranquilizador do universo que só ela consegue ver. A fábula é um estilo que trabalha com elementos simbólicos para falar sobre o mundo real. No fundo, o Homem Pálido talvez seja a representação do capitão Vidal e do fascismo que serve, que decide racionar a comida para obrigar a resistência a surgir rendida. A própria introdução de Vidal chacinando os inocentes caçadores de coelhos, aparenta ser a re-imaginação de outra pintura de Goya: “El Tres de Mayo de 1808”. Inspirando-se em Goya, Guillermo Del Toro esboça monstros universais, ilustrando mundos de pesadelo criados pelo horror do despotismo. Mundos esses, que devoram as suas crianças.


Saturno devorando a un hijo

6 Comments:

Blogger C. said...

É, de facto, uma criação que nos fica na memória. Um monstro vindo dos confins dos nossos piores pesadelos.

11:28 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Sublime!

8:23 da manhã  
Blogger Unknown said...

O grande Cronos, esse deus que cortou o pénis do pai com uma foice e comia os filhos porque se dizia que um deles o iria destronar, o que aconteceu eventualmente com Zeus.
É um quadro magnífico e por falar em Goya, não estou com grande feeling sobre o filme que conta a sua história, apesar de gostar muito de Javier Bardem e da Natalie Portman.

Quanto ao “El Tres de Mayo de 1808” felizmente já tive o prazer de o ver ao vivo

6:30 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Ambos se encontram expostos no Museu do Prado, se não estou em erro.

9:10 da manhã  
Blogger Loot said...

Não tás em erro.
Curioso eu ter "comido" o quadro de Cronos a "comer" o filho, ou simplesmente um curto-circuíto mental enfim.

10:53 da tarde  
Blogger Francisco Mendes said...

Foste lambareiro :)

9:06 da manhã  

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