sábado, outubro 20, 2007

A transcendência redentora da Morte


Au Hasard Balthazar


Mouchette

Au Hasard Balthazar” e “Mouchette” são duas obras imensas de Robert Bresson, imersas num sofrimento tão infernal que apenas a Morte poderá exorcizar. As figuras centrais nos respectivos filmes são um animal (Balthazar) e uma criança (Mouchette), mas ambos convergem no estudo da santidade, na exploração das experiências de um inocente derramado num mundo ímpio e na revelação da desumanidade geral através da concentração na dor individual. Sempre munido com o seu estilo elíptico de filmar, Bresson fragmenta espaços (e corpos no espaço), combinando elementos minimalistas para expandir significados no receptor. Uma das suas estratégias mais discutidas é a utilização de actores (aos quais chamava modelos) sem experiência interpretativa e com uma expressividade neutra, sendo o burro Balthazar o seu exemplo-mor. Magistralmente, este engenho cria receptáculos vazios nos quais poderemos verter os nossos sentimentos, conjecturas, aflições e principalmente, ânsias espirituais. Ele gera ausências para que as possamos preencher com as nossas projecções, testando as nossas próprias reacções. O Cinema tem muito para comunicar e por vezes a linguagem que utiliza não requer apenas atenção. A sua assimilação requer paixão. Bresson desbravou novos caminhos e dilatou o vocabulário cinematográfico, mas na sua essência, o seu Cinema pinta sentimentos. Mouchette representa muitos de nós, seres incompletos e incapazes de articular a dor, suspirando pela expurgação da miséria de uma existência circunscrita aos anéis de um inferno interior. Deambulando sem direcção num longo calvário, que todos consigamos encontrar no fim, como Balthazar, um local de paz… o nosso Santuário.

2 Comments:

Blogger Dieubussy said...

Recordo-me de ver algo em Mouchette que questiona essa santidade (ou pureza inocente) da personagem como a apresentas aqui. Na cena em que a menina é forçada a ter relações, Bresson foca as suas mãos em sobreposição às costas do violador: num primeiro momento contraídas, em gesto de recusa, e depois relaxadas, algo que interpretei como uma cedência menos digna e não tanto como um colapso ou perda de forças. Sempre me interroguei a esse respeito desde que vi o filme há anos atrás e continuo em dúvida quanto a esse mínimo detalhe, tão determinante na edificação da dimensão interna de Mouchette.

Também encontraria na própria natureza dos pássaros um paralelo para a condição da jovem?

O final, menos ambíguo, realça outro enfático momento de evidente simbologia: o lençol que a envolve com morte - no fundo uma mortalha - essa sim a libertação derradeira para esta condenada.

Muito bom texto, parabéns.

12:16 da manhã  
Blogger Francisco Mendes said...

Partilho as idênticas nuances reveladas pelo teu correcto/belo apontamento. É esta ambiguidade minimalista de Bresson que instiga múltiplas e diversas reflexões ao longo dos (re)visionamentos da sua filmografia.

8:46 da manhã  

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